O Globo
Já virou lugar-comum para quem acompanha o
noticiário no Brasil dizer
que vivemos mergulhados num recorrente Dia da Marmota. A expressão, para os não
familiarizados, é uma referência ao filme “Feitiço do tempo”, com Bill Murray,
em que o protagonista acorda toda manhã para viver o mesmo dia em que os mesmos
fatos se repetem, mas só ele percebe. Há vários “Dias da Marmota” rolando no
Brasil neste momento, mas poucos vêm de tão longe e são tão sintomáticos quanto
o dos Correios.
A estatal divulgou ontem um plano de reestruturação com medidas genéricas, de corte de despesas, demissões e venda de ativos a renegociação de contratos com fornecedores para recuperar a competitividade. Não foi informado quantas demissões, qual a economia estimada, se haverá metas de eficiência ou em que prazo se daria a tal recuperação.
O único dado concreto é que a empresa
precisará de um socorro de R$ 20 bilhões para não quebrar. Como o governo Lula briga
neste momento com o Congresso por mais recursos, alegando dificuldades fiscais,
fica feio dizer que enterrará uma bolada dessas numa estatal obsoleta e
deficitária. Ficou combinado então que o empréstimo será feito por um consórcio
de bancos, com garantia do Tesouro. Na prática, se os Correios derem o calote,
o contribuinte pagará a conta. Não é dinheiro da União, mas é.
Considerando que esse já é o segundo plano de
demissão voluntária desde o início do ano e que o empréstimo de R$ 20 bilhões
já vem para cobrir outro de R$ 1,8 bilhão feito agora em junho, fica evidente
que a reestruturação é cortina de fumaça para esconder um fato eloquente: os
Correios são “insalváveis”. Ao longo das últimas décadas, suas funções mais
relevantes foram as de cabide de emprego e foco de corrupção.
Para que fique clara a dimensão desse Dia da
Marmota, foi ali que nasceu o primeiro escândalo de corrupção do primeiro
mandato de Lula, lá em 2005, quando veio à tona um vídeo mostrando um
apadrinhado do hoje bolsonarista Roberto
Jefferson enfiando no bolso maços de dinheiro de propina
recém-recebida. Pressionado, Jefferson revidou revelando o mensalão, e o resto
é História.
Em 2010, a direção dos Correios, já
franqueada por Lula e Dilma
Rousseff ao PMDB, aplicou o dinheiro do fundo de pensão dos
funcionários, o Postalis, em títulos da Venezuela e
da Argentina e
numa série de empreendimentos fraudulentos que se tornaram alvo de operações
da Polícia
Federal, com prisões e delações premiadas. O rombo, estimado em mais
de R$ 15 bilhões, é pago até hoje pela estatal, por seus funcionários e pelos
aposentados, que chegam a sofrer 80% de desconto no contracheque.
Depois do trauma, Michel Temer e Jair
Bolsonaro incluíram os Correios no plano de privatizações e
começaram a preparar a empresa para a venda, com planos de demissão voluntária,
fechamento de agências, automatização e encerramento de operações deficitárias
— exatamente o mesmo cardápio de agora.
Combinados com a explosão do comércio digital
na pandemia, os ajustes fizeram a companhia passar a dar um lucro que chegou a
R$ 2,3 bilhões em 2021. A partir de 2022 — ano eleitoral e o último da gestão
Bolsonaro —, a coisa voltou a degringolar.
Ao assumir, Lula anunciou concurso para
contratar mais 3,5 mil funcionários, botou quadros do PT para
mandar na companhia e sepultou a ideia de privatização. Quem defende a decisão
diz que os Correios preenchem uma função social porque vão aonde ninguém vai,
como comunidades conflagradas pela violência ou muito longínquas, em que
entregar encomendas não dá lucro. Por isso, dizem, são insubstituíveis.
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É o mesmo argumento usado nos anos 1990
contra a privatização da telefonia. Naquela época, os celulares e a internet
engatinhavam, mas era claro que estatais obsoletas e corruptas não teriam a
menor condição de competir com a nova tecnologia. Hoje ninguém mais sente falta
dos orelhões, das fichas, nem de receber herança em ações da Telebras, e o
Brasil é um dos países do mundo com mais celulares per capita.
É graças a esses aparelhos que boa parte da
população das periferias, das favelas e até dos ermos da Floresta Amazônica faz
negócios, enviando e recebendo encomendas não só pelos Correios, mas também
pelos mercados livres e amazons da vida.
A experiência já mostrou que, com regulação
bem feita, é possível estimular a competição e evitar a exclusão social. Dá até
para obrigar as companhias a criar um sistema eficiente de distribuição de CEPs
para que nenhum brasileiro fique sem endereço formal. O que não dá é para
continuar torrando dezenas de bilhões do meu, do seu, do nosso para manter uma
operação claramente insustentável. Nem a marmota de Bill Murray merece isso.
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