segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Trump, pacifista, por Demétrio Magnoli

O Globo

Ele despreza a Pax Americana erguida por seus predecessores desde a Segunda Guerra Mundial

Donald Trump candidatou-se ao Nobel da Paz. Clama, sem corar, ter “solucionado oito guerras” e prontifica-se a resolver a “mais difícil”, na Ucrânia. Seu plano de paz para o conflito em Gaza reserva para si mesmo a função de CEO de um Conselho da Paz. Trump é o improvável pacifista destes nossos tempos belicistas.

Quem, senão um desalmado, preferiria a guerra à paz? Pacifismo, palavra bonita, remete a Gandhi, à contracultura hippie, a jovens manifestantes, flores à mão, diante de fileiras de policiais armados.

Bertrand Russell tornou-se um ícone do pacifismo por sua oposição ativa à Grande Guerra (1914-1918). Às vésperas da guerra seguinte, em 1937, opôs-se ao rearmamento britânico, propondo que as futuras tropas invasoras nazistas fossem “tratadas como visitantes”. Só desistiu do apaziguamento em 1940, reconhecendo que, em circunstâncias extremas, a guerra seria a menor de duas desgraças.

À época, George Orwell registrou que “a propaganda pacifista geralmente se resume a dizer que um lado é tão ruim quanto o outro”. Era, exatamente, a sentença esperta dos comunistas britânicos, convertidos ao pacifismo em 1939, quando Hitler e Stálin aliaram-se no Pacto Molotov-Ribbentrop. É o que Lula repete, desde 2022, sobre a guerra na Ucrânia — sem, porém, furtar-se a aplaudir o desfile militar russo do Dia da Vitória na Praça Vermelha.

Chamberlain invocou a santidade da paz ao ceder os Sudetos tchecos a Hitler, na Conferência de Munique. Contudo interessava-lhe conservar a neutralidade britânica, na esperança de assistir de longe à mútua destruição entre URSS e Alemanha. Estadistas não são filósofos: Chamberlain, Lula e Trump, ao contrário de Russell, lançam mão da retórica pacifista para alcançar fins políticos.

O frágil cessar-fogo em Gaza, algo justamente celebrado, faz parte de um complexo roteiro diplomático que conduziria, lá no fim, à autodeterminação nacional palestina. O objetivo, tão distante quanto incerto, é a única solução de paz para a Terra Santa. Trump, porém, um pacifista recém-convertido, enxerga o plano de paz à luz de suas ambições pessoais e estratégicas.

Primeiro, o ego: o posto de comando no Conselho da Paz, o cobiçado Nobel, a adulação mundial. Depois, os Estados Unidos, nas esferas da geopolítica e da economia. Um acordo geral de segurança entre Israel e os países árabes cimentaria a hegemonia americana na região, minimizando as influências chinesa e russa. Paralelamente, a reconstrução de Gaza ofereceria valiosas oportunidades de negócios entrelaçando empresas dos Estados Unidos e das monarquias petrolíferas do Golfo Pérsico.

Trump despreza a Pax Americana erguida por seus predecessores desde a Segunda Guerra Mundial. Seu motor é o paradigma vigente no século XIX: a divisão do mundo em esferas de influência das grandes potências. Sob tal ponto de vista, Xi Jinping e Putin são rivais, mas também sócios no grande jogo da ordem interestatal. Segue-se daí que, segundo seus critérios, a invasão da Ucrânia nada mais é que uma guerra civil na “Grande Rússia” — e deve, portanto, ser “solucionada” por meio de uma capitulação honrosa.

Nessa busca, Trump já tentou de tudo. Expulsou Zelensky da Casa Branca, estendeu um tapete vermelho a Putin no Alasca, pressionou o líder ucraniano a ceder a totalidade do Donbass, ameaçou a Rússia com a venda de mísseis à Ucrânia, anunciou sanções petrolíferas.

Nada feito. A missão pacifista de Trump choca-se com a insistência russa na capitulação total, com a persistência dos ucranianos na defesa de sua soberania nacional e com a resistência dos aliados europeus, temerosos do neoimperialismo russo. O presidente americano dispõe dos meios para silenciar as armas de Netanyahu, mas descobriu, perplexo, que os ucranianos combaterão mesmo sem armas americanas.

Samuel Johnson definiu o nacionalismo como “último refúgio do canalha”. Troque nacionalismo por pacifismo e a descrição permanece válida. Não acuse Trump de exibir-se como “falso pacifista”. O pacifista verdadeiro trata as forças nazistas como convidados e presenteia territórios de países estrangeiros a poderosos invasores.

 

Nenhum comentário: