quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Cristiano Romero: Brasil, um país partido

- Valor Econômico

Mudar educação esbarra na elite: a universidade pública

Durante campanhas eleitorais, candidatos não avisam que vão aumentar impostos e cortar despesas. Os discursos dos presidenciáveis mostram que há consenso, porém, quanto à grave situação das finanças públicas e à necessidade de se fazer algo. Não se tenha dúvida: a vida de uma boa parcela dos brasileiros vai piorar antes de melhorar, e isso ocorrerá mesmo que o eleito seja o mais consciente, bem-intencionado e preparado dos postulantes. Haverá elevação de impostos, apesar de o país já ter carga tributária elevada - quase 34% do PIB - para nações em desenvolvimento, e redução de gastos. Mas quem vai pagar a conta? Por que a sociedade brasileira está tão dividida em meio a uma crise que aflige a todos há cinco anos?

Crise fiscal é um tema etéreo para a maioria da população, não só para a faixa menos instruída, mas para todos os viventes deste imenso território. Aqui, é arraigada a ideia, absolutamente equivocada, de que o governo, o Estado, tem capacidade infinita para fabricar dinheiro e, assim, bancar toda e qualquer despesa. Não tem não. Quando o faz, as consequências são conhecidas: inflação galopante (que pune especialmente os mais pobres); corte de investimentos; arrocho salarial para o funcionalismo (os servidores deveriam ser os primeiros a se preocupar com a saúde das finanças do Estado); precarização dos serviços públicos; elevação da taxa de juros administrada pelo Banco Central e do custo de financiamento do Tesouro Nacional; redução do ritmo de crescimento da economia; escalada do desemprego; aumento exponencial da desigualdade e da pobreza.

John Kennedy, um dos presidentes mais populares da história dos Estados Unidos, se notabilizou quando disse ao povo de seu país: "Meus companheiros americanos, perguntem não o que seu país pode fazer por vocês, mas o que vocês podem fazer pelo seu país". Dita entre nós, a frase de Kennedy seria criticada com ferocidade por quase todo o espectro político.

Como observa com grande sagacidade o economista Armando Castelar, do Ibre-FGV, ajuste fiscal significa reduzir a renda disponível de cidadãos e empresas. Se os governantes dissessem isso claramente, seria mais fácil transmitir a mensagem. Sabendo-se que o arrocho seria pago por todos, o chefe do Executivo exporia quem escolheu, entre cidadãos e empresas, para pagar a maior fatia da conta. E justificaria suas escolhas. A população entenderia.

Ajustes são necessários - e vamos sempre ouvir falar deles porque as turbulências na política e na economia são cíclicas e, no caso brasileiro, previsíveis - para enfrentar disrupções, como as crises mundiais de 1929 e 2008, para citar apenas os exemplos mais notórios em um século. No Brasil, avistamos furacões no horizonte e, em geral, nada fazemos. Temos o péssimo hábito de viver em festa durante os tempos de bonança, adiando o enfrentamento de problemas ancestrais que, sabemos, criarão constrangimentos adiante; e de gastar e de consumir agora, já, sem poupar ou planejar o futuro. Por quê? Porque temos enorme dificuldade de chegar a consensos como nação.

Pensadores duvidam da existência de uma nação brasileira. De fato, apesar dos laços históricos, culturais, econômicos e linguísticos que unem os quase 209 milhões de habitantes desta Terra de Santa Cruz (antes Ilha de Vera Cruz, depois, Brasil, e antes dos "descobridores", Pindorama), somos intolerantes com o outro. Talvez, o fato de termos convivido durante tanto tempo com a ignomínia da escravidão - que persiste, dissimulada - explique divisões tão profundas, que na eleição presidencial deste ano exacerbaram-se.

O apartheid sul-africano, que tanto chocou o mundo, consistia na segregação forçada de "raças" - apenas os brancos podiam votar, e aos negros era proibido, por exemplo, ter relação sexual com os brancos. Em pleno pós-Guerra, quando se esperava que o conjunto das nações não toleraria mais regimes políticos que subjugassem o ser humano como fizeram nazistas e fascistas (e não só esses), a infâmia se instalou na África do Sul em 1948 e sucedeu por quase cinco décadas. Sua hegemonia deveu-se a um ardil: o sistema de transporte não ligava os guetos ao centro das grandes cidades.

Nada muito diferente do que vimos aqui. Durante décadas, transportar-se da periferia pobre de algumas capitais às praias de bairros "nobres" ou ao centro dessas cidades era missão impossível aos que não possuíam um automóvel - o poder público, simplesmente, não levava transporte coletivo até as comunidades pobres. A segregação, que os americanos só começaram a proibir por força da lei no fim da década de 1960, sobrevive entre nós de maneira disfarçada.

No Brasil, há uma forma de apartheid tão danosa quanto qualquer outra, porque silenciosa: o nosso descaso com educação, marcado pela péssima qualidade do ensino público nos ensinos fundamental e médio, o baixo acesso dos jovens ao nível médio, as taxas inaceitáveis de analfabetismo da população adulta, além do elevado grau de analfabetos funcionais.

Essa tragédia - consequência, sem dúvida, da cultura escravagista que perdura em nossa sociedade, mas não só dela - é tão antiga quanto os inúmeros diagnósticos de especialistas sobre o que deve ser feito para sairmos de situação tão vexaminosa. O caso é crítico porque o principal obstáculo a mudanças está no establishment do setor: intelectuais, professores e funcionários das universidades públicas, a maioria preocupada tão somente com a perda de privilégios, como estabilidade no emprego e aposentadoria integral, que entorpecem os funcionários públicos em geral.

Num país de imigrantes, com fortes características de "povo novo" (na definição de Darcy Ribeiro no clássico "Configurações Histórico-Culturais dos Povos Americanos"), a inexistência de padrões aceitáveis de alfabetização e escolaridade cria campo fértil para mistificações. Uma delas: o Brasil é uma "democracia racial" - na verdade, o racismo é uma nódoa que, num momento de estresse como o atual, emerge sem disfarce, assim como as várias formas de discriminação - de gênero, classe social, idade (ser velho no Brasil é quase uma doença), origem (já melhorou, mas, na cidade de maior população nordestina, o preconceito ainda é disseminado), religião (outro mito decaído: o da democracia religiosa)...

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