- Folha de S. Paulo
Presidencialismo de coalizão só funciona quando o chefe consegue coordenar sua base
Os eleitores que pretendem votar em Jair Bolsonaro não são todos farinha do mesmo saco. Há os que se identificam com as ideias do candidato e acreditam, como ele, que os problemas de segurança se resolvem pela violência com a participação de cidadãos armados; que é natural mulheres ganharem menos que os homens pelo mesmo trabalho; que os negros são indolentes, os homossexuais, pervertidos (ou doentes); que os torturadores são heróis e que a “petralhada” deve ser combatida a disparos de fuzil.
Decerto há também aqueles cujo antipetismo visceral os leva a considerar o capitão o mal menor. Alguns, otimistas, afirmam até que a sua eventual vitória não colocaria a democracia em risco, pois trata-se de um candidato como os outros que joga dentro das regras, e, eleito, governará com elas. Entre estes, por sinal, parece aumentar o contingente dos que invocam o seu guru ultraliberal para reforçar tal expectativa.
Com a candura dos justos e a soberba de quem confia cegamente no próprio taco, o economista Paulo Guedes declarou à repórter Malu Gaspar, da revista Piauí (edição de setembro): “Todo mundo trabalhou para o Aécio, ladrão, para o Temer, ladrão. Aí chega um sujeito completamente tosco, que pode mudar a política. Amansa o cara! Acho que Bolsonaro já é outro animal.”
Ao economista e àqueles que com ele compartilham a ilusão de “amansar o animal”, recomenda-se a leitura de dois textos que, na semana passado, agitaram a elite da opinião pública nos Estados Unidos: o artigo anônimo de um alto funcionário da Casa Branca, publicado na terça feira pelo New York Times, e trechos de “Fear: Trump in the White House” (Medo: Trump na Casa Branca) novo livro do jornalista Bob Woodward, que, em parceria com Carl Bernstein, revelou o escândalo de Watergate, sepultando a carreira política de Richard Nixon, lá se vão quatro décadas.
Nos dois casos, o assunto é a intimidade da Presidência Trump e os esforços de assessores graduados para limitar o desastre político provocado pelo mandatário —a quem descrevem como tosco, prepotente, mentiroso, profundamente ignorante e desinteressado dos fatos cujo conhecimento é essencial ao exercício do governo.
Depois de um ano e meio da ascensão de Trump, nada parece indicar que tenha sido possível “amansar o animal”, a ponto de não poucos observadores e analistas se perguntarem se a democracia americana não estaria em perigo, ameaçada não por um golpe, mas pela corrosão lenta das instituições e valores democráticos.
As semelhanças entre Trump e Bolsonaro são evidentes, para além da admiração confessa do brasileiro pelo americano. Ambos fazem parte de uma categoria de políticos de direita extremada, chamados populistas, em franca expansão pelo mundo —até na Suécia, como se acaba de ver. Populistas como Trump lidam aos trancos com os instrumentos do governo democrático, que requerem do titular do Executivo enormes reservas de aptidão para negociar divergências e coordenar expectativas. Com Bolsonaro, é de esperar o mesmo —na menos ruim das hipóteses.
Entre os sistemas congêneres, o presidencialismo brasileiro é um mecanismo especialmente delicado que não pode prescindir da habilidade política do chefe do Executivo. Funcionando mediante um arranjo no qual a maioria parlamentar necessária à governança depende forçosamente de coalizões partidárias —às vezes, de muitas legendas—, o presidencialismo brasileiro demanda um dirigente com experiência política e atributos de liderança, ouvindo, negociando e sedimentando convergências.
O presidencialismo de coalizão só funciona quando o presidente consegue coordenar a sua base no Congresso. Isso não se faz com bravatas e ameaças; não é tarefa, para populistas que falam grosso, apontam armas imaginárias e oferecem soluções simplórias.
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Maria Herminia Tavares de Almeida professora titular aposentada de Ciência Política da USP e pesquisadora do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
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