sábado, 6 de abril de 2019

Pensamento circense

O Brasil de Bolsonaro está se convertendo em um picadeiro para malabarismos históricos dos mais bizarros. Parece só folclórico, mas há consequências graves

Por Jerônimo Teixeira / Revista Veja

Deve ter sido fake news criada pelos iluministas para ridicularizar a Igreja. A lenda, ainda assim, se consagrou: consta que os teólogos medievais se dedicavam a debater quantos anjos poderiam dançar na cabeça de um alfinete. Nas últimas semanas, o Brasil vem discutindo temas não tão etéreos, mas bem mais esdrúxulos: o nazismo seria um movimento de esquerda? E o regime militar instaurado no Brasil em 1964 terá sido mesmo uma ditadura? A resposta inequívoca a essas questões é, pela ordem, “não” e “sim”. Mais recomendável, porém, será evitar, nas situações sociais cotidianas, aquele chato que vem nos trazer a verdade revelada do esquerdismo de Hitler e do heroísmo do general Médici. 

Pena que aos brasileiros essa opção foi negada: o nazismo de esquerda e a quartelada democrática que nos salvou do comunismo no 31 de março foram temas impostos ao país pelo mais alto mandatário do Executivo e por seus ministros — em particular, o bizantino Ernesto Araújo, das Relações Exteriores, que vê demônios globalistas dançando na cabeça de qualquer um que critique seu cruzadismo. Este é um governo que promove ativamente teses que até ontem só vicejavam nos recessos insalubres da baixa blogosfera direitista.

O absurdo historiográfico patrocinado pelas mais altas autoridades do país não é mero colorido folclórico da “nova política” que se anuncia desde a campanha eleitoral. Bolsonaro devota-se a essas asneiras com uma paixão que não demonstra em temas realmente cruciais para o Brasil. Foi o presidente que ordenou a comemoração, nos quartéis, do golpe de 1964 , e foi ele que, na terça-feira 2, saiu de uma visita ao Museu do Holocausto, em Jerusalém, dizendo que o nazismo foi “sem dúvida” de esquerda — ecoava assim afirmações do chanceler Araújo em seu blog, Metapolítica. Com a bênção do “mito”, o Brasil se vê engolfado em um mal-ajambrado revisionismo histórico. É o império do que João Cezar de Castro Rocha, crítico literário e professor da Uerj, definiu, em sua coluna em VEJA, como “analfabetismo ideológico”.

Castro Rocha cunhou o termo a partir da expressão corrente “analfabetismo funcional” — a incapacidade de entender e interpretar corretamente um texto. O analfabeto ideológico, porém, maneja bem as armas da retórica. “Analfabetismo ideológico significa reduzir o ato de leitura a uma projeção no texto de um sentido previamente determinado pela ideologia do leitor”, define Castro Rocha. 

Como o analfabeto ideológico tem um “razoável nível de competência”, sua habilidade para distorcer fatos seria “potencialmente infinita”. O golpe de Estado que destituiu João Goulart transforma-se assim na Revolução Redentora que salvou o país do comunismo. E a ditadura que cassou políticos — inclusive apoiadores de primeira hora como Carlos Lacerda —, censurou a imprensa, matou e torturou opositores converte-se no regime benfazejo que preservou a democracia brasileira. Um governo de orientação liberal ou conservadora poderia, sim, propiciar um ambiente no qual certas mistificações da esquerda fossem contestadas — em especial, a exaltação, sem nenhuma autocrítica, de guerrilheiros que assaltavam bancos e sequestravam embaixadores sonhando com uma Cuba de dimensões continentais no sul da América. A tese propalada pelos bolsonaristas, porém, quer negar a natureza claramente autoritária dos governos militares que esses movimentos desejavam derrubar.

Para atestar sua tese de que o nazismo é de esquerda, Bolsonaro aventou um argumento que caberia em um meme do Facebook: o nome oficial do partido nazista alemão era Partido Nacional Socialista. Socialismo é de esquerda, ergo… No pós-guerra, a Alemanha Oriental, comunista, chamava-se oficialmente República Democrática da Alemanha. Alguém dirá que se tratava de uma democracia de fato? Ernesto Araújo, em seu blog, tentou fundamentar a tese a partir das similaridades entre nazismo e comunismo, entre elas a rejeição da democracia liberal e a centralidade absoluta do Estado. São temas examinados no clássico Origens do Totalitarismo, de Hannah Arendt — mas a filósofa alemã não cometeu o despautério de alinhar à esquerda o nazismo, reconhecido a seu tempo como um movimento nacionalista direitista. Nascida na Assembleia Nacional Francesa, no século XVIII, a divisão do campo político em esquerda e direita é fluida — muda conforme o tempo e o lugar —, mas há um firme consenso sobre seus pontos extremos: comunismo à esquerda, nazismo à direita.

Nesses dois casos, está em cena um fenômeno que a psicologia social designa como “polarização factual” — no qual grupos políticos discordam não só sobre interpretações ou visões ideológicas, mas sobre fatos estabelecidos. Thomas Conti, economista e professor do Insper, recentemente explicou o conceito em um artigo esclarecedor no portal Estado da Arte, do jornal O Estado de S. Paulo. Conti não citou exemplos da política nacional, mas o conceito é adequado à propaganda ideológica do governo. “Ditadura é uma forma de governo bem definida, caracterizada por diversos limites à participação política dos cidadãos”, disse Conti a VEJA. Não há dúvida, portanto, de que o regime de 1964 foi ditatorial. Conti considera que ainda existe um debate razoável sobre a natureza do nazismo, sobretudo a partir de Hannah Arendt. Mas a afirmação categórica de que o nazismo é de esquerda constitui um “revisionismo histórico forte”, e nesse sentido cabe na polarização factual. O reforço de identidades grupais é bem servido pela polarização. E o confronto com o grupo adversário é importante: não por acaso, Araújo diz que “a esquerda fica apavorada” quando se empurra o nazismo para seu campo.

A polarização delirante produz aberrações que são até divertidas. Em um programa na rádio Jovem Pan, Maristela Basso, professora de direito da USP, entusiasmou-se na crítica à ditadura da Venezuela: disse que seu remoto inspirador, Simón Bolívar, viveu em um tempo no qual “as leituras de Marx e Lenin” estavam no auge. Bolívar morreu em 1830, quando o futuro autor de O Capital contava tenros 12 anos; Lenin nasceria quarenta anos depois. A anedota fica ainda mais engraçada quando se considera que Marx desprezava Bolívar: escreveu para uma enciclopédia americana um verbete cáustico sobre o “Libertador”, a quem também chamou, em carta ao amigo Friedrich Engels, de “o mais covarde, brutal e miserável dos canalhas”. O deputado federal Kim Kataguiri (DEM-SP), em um vídeo depois apagado do canal MBL no YouTube, prestou-¬se a explicar o duvidoso conceito de “marxismo cultural”.

Começou com uma explanação escolar do pensamento de Marx, e já errou dizendo que, no esquema geral das mudanças revolucionárias preconizadas pelo filósofo, o socialismo viria depois do comunismo (é o contrário). E logo veio o anacronismo selvagem: Kataguiri afirmou que Marx revisou certas ideias a partir da I Guerra Mundial. Marx morreu em 1883, 31 anos antes do assassinato do arquiduque Francisco Ferdinando, estopim do conflito.

A ignorância pode ser corrigida — mas não quando se trata de ignorância militante. Os factoides ideológicos do bolsonarismo não se limitam a bobagens ditas em canais do YouTube, a opiniões esquisitas proferidas em passeios por Israel ou à ordem do dia dos quartéis. São parte da política do Estado. O inacreditável ministro da Educação, Vélez Rodríguez, já anuncia livros didáticos que negarão a ditadura militar de 1964. Nesse caso, não dá mais para rir.

Publicado em VEJA de 10 de abril de 2019, edição nº 2629

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