sábado, 6 de abril de 2019

A cegueira do radicalismo

Polarização, intolerância, ódio e até violência física. O comportamento dos brasileiros decorre da doutrinação ideológica transformada em política de Estado

Antonio Carlos Prado, Vicente Vilardaga e André Vargas / IstoÉ

O Brasil vive a era do radicalismo. E, como em todo ambiente extremado, existem dois lados que, embora berrem, só ouvem o que lhes interessa ¬— mesmo que o trombeteado por suas turbas sejam estelionatos históricos. Na última semana, vivenciamos as pontas mais visíveis dessa radicalização que, em geral, nasce de governos doutrinários movidos por ideologias tacanhas.

Não raro, destinadas a maquiar fracassos administrativos. É como se o Brasil se adequasse à imagem shakespeariana do absurdo: “a do louco conduzindo o cego”, onde os cegos são a militância amestrada. O primeiro fato envolveu a ladainha do comemora-não-comemora os 55 anos do golpe de 31 de março de 1964. O outro partiu do ministro de Relações Exteriores, o embaixador Ernesto Araújo, que numa insônia pseudo-acadêmica inventou que o nazismo de Adolf Hitler e o fascismo de Benito Mussolini seriam ideologias de esquerda. Na polêmica sobre o 31 de março, foi o próprio presidente Jair Bolsonaro quem ordenou que se celebrasse o aniversário do golpe – para ele, “revolução” ou “contragolpe”.

A questão foi parar na Justiça. Houve liminar, mas aconteceu principalmente o que o mandatário queria: a polarização. Nas ruas, o que se viu foram gatos-pingados a favor e contra a data. Em São Paulo, a Avenida Paulista virou palco de brigas e discussões acaloradas. “Sou patriota e fui para a Paulista comemorar um dia histórico. 

Vivemos mais de trinta anos de doutrinação e escravidão nas mãos da esquerda comunista”, afirmou um personagem que só quis se identificar como Torres, integrante do movimento Patriotas Lobos do Brasil. “Eu fui às ruas contra a celebração do golpe e contra Bolsonaro”, retruca Antonio Carlos Silva, dirigente do Partido da Causa Operária. “Uma companheira foi agredida pelo grupo de direita, alguns deles tinham tasers e spray, outros carregavam paus”. Nas redes sociais, as disputas mais renhidas duraram uma eternidade. “Há milícias organizadas nas redes”, lamenta o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz. “Elas usam robôs e perseguem opiniões e pessoas que pensam de forma diferente”.

Esse fenômeno político e social não constitui uma exclusividade nacional. E nem da direita. A esquerda também está mergulhada de cabeça. Diversos países vivem imersos hoje no mesmo clima de antagonismo, feito um filme que roda para trás: já o assistimos e sabemos que o final do enredo não tem nada de feliz. Na União Europeia, por exemplo, os ingleses, embora fleugmáticos nas manifestações, se dividem em relação ao Brexit. Na França, os coletes amarelos fustigam semanalmente nas ruas o governo de Emmanuel Macron.

Em outras nações do continente, dá-se o retorno à formação dos estados nacionais. Somemos à situação da Europa a dos EUA, onde ressurge o infame discurso da supremacia branca, e encontraremos um denominador comum: a repulsa aos imigrantes. No Brasil, gente que vem para cá, fugindo das misérias de suas terras, como é o caso dos venezuelanos tiranizados por Nicolás Maduro, é bem acolhida. Há, no entanto, um segundo denominador que abrange Brasil, EUA e países europeus. Trata-se de governantes que agem como uma espécie de evangelizadores, a impor suas doutrinas —¬¬ nem sempre com os pés na realidade. Onde eles se reproduzem existem radicalizações no tecido social. Assim, empurram a sociedade para o desalento. Da prostração nasce a descrença em relação ao futuro.

Extremismos são engendrados por tais formas de governos, que se alimentam de demagogia e ideologias e regurgitam populismo. Se ainda fossem conceitos ideológicos no campo filosófico hegeliano, nos quais há um aprimoramento constante das ideias como sínteses que sucedem o debate de teses e antíteses, tudo estaria bem – o que não significaria o fim da História, como um dia decretou, para ter seus quinze minutos de glória, o filósofo e economista americano Francis Fukuyama. Nada há de filosófico na vocação para o doutrinário. O que impera são pregações totalitárias, como as que assistimos no governo de Jair Bolsonaro, e as que já experimentamos, por exemplo, sob os governos populistas de Getúlio Vargas, João Goulart, Lula e Dilma Rousseff.

Tal método de governar pode ser cotejado à enfermidade do anoréxico que enxerga distorcida a sua imagem no espelho. Os presidentes que se apegam ao método desvirtuam a realidade como se eles fossem o espelho no qual a sociedade se olha. Assim foi com Lula, o criador e disseminador do “nós contra eles”. Nesse momento, Bolsonaro e alguns ministros elevam a deturpação ao estado da arte. A gestão do capitão reformado, em sua primeira centena de dias que foram tão ruins que parecem mil, promove de dentro do próprio Palácio do Planalto essas distorções. “A noção de que política se faz a partir do compartilhamento se quebrou no Brasil”, diz o cientista político Eduardo Grin, da Fundação Getúlio Vargas. “Ao presidente interessa o confronto permanente”.

O confronto a que Grin se refere está mais do que bem desenhado: de um lado há a esquerda ou os que se dizem de esquerda, do outro se posiciona a direita ou os que se dizem de direita. Nos últimos dias, ISTOÉ mergulhou nesse mundo. É fácil perceber que as táticas da guerrilha dos radicais de esquerda e direita são primas-irmãs, na forma e no conteúdo. Todos se comportam de modo muito parecido. Nas redes sociais ou mesmo fora delas, as hordas atuam organizadas como manada. Sobra disposição e energia para linchar e moer por meio de uma máquina muito poderosa quem ousa pensar diferente. Em geral, investem contra o indivíduo que se “atreve” a tecer uma crítica contra a cartilha ideológica pela qual rezam.

Partem para desqualificá-lo de todas as formas. O comentário é replicado para o exército organizado que, imediatamente, passa a promover uma espécie de linchamento público do(a) autor(a) da opinião indesejada. É uma tentativa de destruição de reputação clássica. Com a ajuda de robôs, os ataques são intensificados e os posts distribuídos para um número maior de pessoas. Nas ruas, os provocadores são infiltrados em manifestações, pacíficas ou não, que envolvam apoiadores da tese adversária.

A ideia é “causar”, para usar uma expressão atual. Há um vocabulário que define os dois lados. Para a esquerda, os adversários da direita são “bolsominions”, “reaças” ou mesmo “fascistas”. Para a direita os inimigos são “esquerdopatas”, “esquerdalha” ou “petralhas”. A execução da vereadora Marielle Franco, as invasões do MST, as depredações de propriedades em meio a manifestações que começam pacíficas são emblemas concretos do sectarismo. “Toda a cultura e a prática do confronto começou em 2013 com Lula. O ex-presidente transformou a coisa numa guerra santa”, diz Grin. Em postagem no Twitter, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso clamou pela “sensatez”. “O Pr (presidente da República) confunde os autoritarismos: chama os nazis de comunistas. O PT confunde Justiça com arbítrio. Sem a sensatez a democracia é difícil. Não desistiremos”, escreveu.

Há explicações para o Brasil ser a república dos Jangos, dos Lulas, das Dilmas e dos Bolsonaros. Basta ir à fonte de um dos mais conceituados intelectuais da América Latina, o historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda. Em seu clássico “Raízes do Brasil”, ele delineia o que chama de o “homem cordial” – expressão tomada emprestada do poeta cubano Rubén Darío. Para Buarque de Holanda, assim é o brasileiro. Com “cordialidade”, ele não quis dizer que somos bonzinhos e educadinhos. Desejou, sim, mostrar o quanto somos passionais e emocionais.

O brasileiro de outros tempos e dos atuais abre a garganta gritando gol e fecha a mão para esmurrar o torcedor adversário. Na política o fanatismo é igual. Outra explicação pode estar na formação da nossa república, “quartelada” à qual o povo assistiu “bestializado”, no testemunho presencial de Aristides Lobo. A zonzeira daquela época era ainda a ressaca do suntuoso último baile da Ilha Fiscal, dias antes do 15 de novembro de 1889. Monarquistas e republicanos dançaram, embriagaram-se e juntos se empaturraram de camarões.

Empedernido republicano, Benjamin Constant achou que não lhe caía bem ir ao baile. Aproveitou-se então da vontade de sua filha de ver a festa: alugou um barco, e lá ficou, no mar, olhando quem entrava e quem saía. Convenhamos, tudo isso só podia dar mesmo no que deu.

Aqui e em todo o mundo, países movidos por ideologias estão fadados a esquecer do que é essencial à população. Os governos focam na doutrinação e esquecem investimentos básicos na educação, saúde e segurança. O que conta é dividir. É o palavrório – e o ódio nutrido por quem expressa opinião diferente.

As autoridades deveriam ler, por exemplo, Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá. Ali está o caminho para pacificar o País: “o melhor programa de governo é não atrapalhar aqueles que produzem, investem, poupam, empregam, trabalham e consomem”. Também poderiam ouvir o Baião de Nossa Senhora da Penha, composto por David Nasser e Guio de Morais. Há um trecho exemplar: “(…) Dê bênção padroeira/ pra essa gente brasileira/ que quer paz pra trabalhar”.

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