sábado, 6 de abril de 2019

O governo ficou menor

Ao desperdiçar tempo com questões irrelevantes e brigas desnecessárias, o governo Bolsonaro perde apoio entre seus eleitores

Por Roberta Paduan, Edoardo Ghirotto e Eduardo Gonçalves / Revista Veja

Nesta semana, o presidente Jair Bolsonaro completa 100 dias à frente do governo. No jargão da política, esse período é chamado de “lua de mel”, fase em que os deslizes são perdoados e os defeitos relevados pela maior parte dos eleitores — que, afinal, elegeu o mandatário da vez. Apesar de Bolsonaro ter sido ungido pelas urnas com 58 milhões de votos, sua lua de mel foi muito mais curta que o normal. Entre janeiro e março, a parcela das brasileiros que avaliavam o governo como ótimo ou bom encolheu de 50% para 38%. A perda de apoio também se manifestou no aumento de eleitores que consideravam o governo regular e passaram a classificá-lo como ruim ou péssimo, fatia que subiu para 27%, 5 pontos porcentuais acima do dado de janeiro.

No cômputo geral, estima-se que cerca de 15 milhões de pessoas que votaram em Bolsonaro deixaram de avaliar seu governo de maneira positiva, de acordo com a consultoria de pesquisa Ideia Big Data, que fez o estudo a pedido de VEJA. A maioria dos desiludidos está na classe média, fragilizada pela crise (veja o gráfico na página seguinte). Com esses números, o atual governo encerrou março com a menor popularidade em um primeiro mandato desde 1995. O Ibope registrou números semelhantes: queda de 15 pontos porcentuais entre os que avaliavam a atual gestão como ótima ou boa de janeiro a março, derrubando a popularidade de Bolsonaro para 34%. No primeiro mandato, Dilma Rousseff fechou o primeiro trimestre com 56% de aprovação; Lula obteve 51% e Fernando Henrique Cardoso, 41%.

A perda de popularidade do atual governo deve-se, em boa parte, à fragilidade de seu eleitorado, reunido em um processo eleitoral altamente polarizado. O caldeirão de eleitores do candidato do PSL juntou grupos com expectativas múltiplas, como foram múltiplas (e vagas) as promessas de campanha: combate à corrupção e ao petismo, reforma conservadora dos costumes, segurança pública. O antipetismo, por exemplo, foi excelente para ganhar a eleição, porém é inútil para governar bem. Mas Bolsonaro dá mostras de acreditar que o eleitor que o escolheu comprou o pacote completo — e nem isso é verdadeiro. A pulverização das pautas propicia uma perda mais rápida do apoio popular, pois cria expectativas muito diversificadas. “Nesses casos, o eleito tem maior risco de frustrar o eleitor, por não conseguir cumprir tudo o que prometeu”, diz o cientista político Sérgio Abranches. Por contraste, Abranches lembra que Fernando Henrique, em 1994, e Lula, em 2002, tinham um discurso bem concentrado em pautas concretas — Fernando Henrique falava da estabilização da economia; Lula, de combate à pobreza. Nenhum dos dois sofreu o desgaste rápido que aflige Bolsonaro.

Hoje, ao menos, o governo tem uma prioridade central — que, no entanto, pouco figurou na campanha e não é uma marca pessoal do presidente: a reforma da Previdência. Trata-se, porém, de um tema difícil de ser explicado à população, pois pode gerar prejuízo imediato e benefício só a longo prazo. “A Previdência não é um plano de governo. É uma pedra no caminho”, diz Milton Seligman, ex-ministro da Justiça no primeiro governo Fernando Henrique. É louvável que Bolsonaro tenha encampado um tema tão urgente para o país, a despeito de sua complexidade e impopularidade. 

A questão é que para seguir com uma empreitada desse tipo ele precisa criar condições para que o governo trabalhe. Em vez disso, o presidente é apontado como o principal causador de problemas de sua gestão. “Ele gastou a maior parte do tempo com miudezas, em vez de se concentrar nos reais problemas do país”, avalia Abranches. O grosso da população, diz o cientista político, não está preo¬cupado com a flexibilização da posse de armas (o primeiro decreto presidencial) nem com a transferência da embaixada brasileira em Israel para Jeru¬salém — um dos tantos projetos que Bolsonaro acalentou e do qual teve de recuar (veja o quadro na pág. 40). Além das miudezas, Bolsonaro não abandona o modo confrontacional de operar, quase sempre recorrendo ao caldeirão ideológico, que infecciona outros temas mais relevantes e mais sérios.

O ativismo em rede social, embora mantenha mobilizadas as bases mais aguerridas do bolsonarismo, não produz consenso na população. Ao contrário, mantém acesa a chama da polarização. Isso é especialmente verdade quando o presidente se dedica a temas comportamentais bizarros como o infame golden shower — o vídeo da performance pornográfica no Carnaval paulista que Bolsonaro compartilhou no Twitter. “O Carnaval é uma boa época para o presidente ficar quieto, mas ele acabou gerando uma confusão desnecessária”, diz Seligman. David Fleischer, cientista político da Universidade de Brasília, é definitivo: “Não é possível governar um país pelo Twitter”. É palpável o desgaste provocado por discussões fátuas nas redes sociais, envolvendo o presidente, os filhos, ministros e o indefectível guru do governo, Olavo de Carvalho. No Congresso, a fixação do presidente na internet já rendeu um epíteto: “governo bitcoin”. “Tem muito capital político, mas não consegue concretizar as ideias. Tente comprar um cafezinho na lanchonete com bitcoin para ver se você consegue”, explica o deputado Luiz Flávio Gomes (PSB-SP).

Longe da nuvem, os problemas do mundo real se impõem. O índice de desemprego teima em manter-se alto, em 12,4% da população economicamente ativa. São 13 milhões de desempregados e quase 5 milhões de desalentados, como são chamadas as pessoas que precisam ou querem trabalhar mas desistiram de procurar emprego formal. Esse último dado é um recorde. E há outro: 27,9 milhões de subutilizados, pessoas que trabalham menos de quarenta horas semanais. De janeiro para cá, as expectativas de crescimento da economia para 2019 escorregaram pela quarta sondagem consecutiva, com a projeção do PIB caindo de 2,6% para 1,98%. São muitas más notícias.

É claro que ninguém esperava um milagre que fizesse a economia bombar em três meses. Mas o mercado e o empresariado, em geral, compraram o projeto apresentado por Paulo Guedes, que prometeu com todas as letras uma agenda liberalizante, que recolocaria o país na rota do crescimento. O cardápio de seu plano econômico é encabeçado pela reforma da Previdência e complementado com uma série de privatizações, além de uma profunda reforma tributária, tudo regado a uma boa dose de austeridade fiscal. Cem dias não são o bastante nem para começar a fazer isso tudo. O período, no entanto, é suficiente para revelar o engajamento do governo e sua capacidade de articulação para tirar os projetos do papel. O empresariado ainda ampara o governo, mas VEJA ouviu sinais de desânimo entre executivos graúdos (nenhum deles, porém, quer declarar isso publicamente).

Pragmático, o empresariado divide o governo em dois. De um lado, os ministérios funcionais, que têm equipes gabaritadas. Nesse rol, Paulo Guedes é consenso. O ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, tornou-se unanimidade em elogios, ao realizar os leilões de concessão de dois portos e de um novo trecho da Ferrovia Norte-Sul. A ministra da Agricultura, Tereza Cristina, e o general Santos Cruz, da Secretaria de Governo, também são bem avaliados. Já a pasta da Educação, a de Relações Exteriores e a de Direitos Humanos, não por coincidência as mais estridentes do ponto de vista ideológico, são definidas com os adjetivos “caótica” e “vergonhosa”. Um empresário disse até que nessas pastas viceja um curioso “petismo de direita” (por óbvio, a expressão é pejorativa). “Quando o governo descamba para a ideologia e para a agenda comportamental, o que nem é papel do Executivo, ele se perde”, afirma um empresário do setor de comércio exterior, que, como os demais, pede que seu nome seja mantido no anonimato.

“Aparentemente, não faltam equipe nem ideias dentro do Ministério da Economia, nem no da Infraestrutura. O problema são os sinais trocados enviados pelo próprio governo, e muitas vezes as cotoveladas distribuídas pelo presidente e seus filhos”, afirma um executivo da área de concessão de rodovias. Ah, os filhos, sempre eles! Há duas semanas, os estremecimentos entre o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, e o presidente Bolsonaro foram agravados pelo Twitter do Zero Dois, Carlos, vereador carioca. O problema foi contornado, mas deixou cicatrizes: o por¬cen¬tual de parlamentares que se declaravam favoráveis à reforma da Previdência caiu de 69% para 56%, segundo pesquisa feita pela consultoria Arko Advice com representantes de todos os partidos. A mesma pesquisa revela que a parcela de parlamentares que classificam a relação entre Executivo e Legislativo como ruim ou péssima hoje está em 60% — era só 17% em março. “O Congresso se sentiu desmerecido quando Bolsonaro protagonizou um embate público com Maia, que tem o apoio da maioria dos partidos”, avalia Cristiano Noronha, vice-¬presidente da Arko.

Noronha lembra que esta é a primeira vez, desde Fernando Collor, que o presidente inicia o mandato sem uma ampla coligação partidária, que lhe oferece apoio no Congresso desde o primeiro dia. O governo não tem um partido coeso e integrado. O PSL até dispõe da segunda maior bancada da Câmara, com 54 deputa¬dos, mas isso é insuficiente em uma Casa com 513 cadeiras. Para piorar, a maioria dos deputados do partido é estreante, e pouco sabe da dinâmica do Legislativo. Os parlamentares mais antigos se queixam de que a sigla não tem organograma, não tem regimento interno, e que seus deputados não conseguem entender o que estão votando sem assessoria técnica. “É ainda um partido invertebrado”, resume Abranches. A sabatina de Paulo Guedes na Câmara, na quarta-feira 3, deixou à mostra a precariedade da base de apoio do governo. Sem amparo, o ministro da Economia se viu jogado na fogueira pela oposição. Quando o deputado Zeca Dirceu, do PT, comparou o ministro a uma “tchutchuca” — gíria funkeira para uma mulher bonita e, digamos, demasiado afável —, Guedes explodiu: “Tchutchuca é a mãe”.

Para um governo que se propõe a implementar reformas estruturais, é preciso muito mais capacidade de articulação. “Não se trata de fazer nova política, mas boa política”, afirma Fernando Schüler, cientista político do Insper. Ou seja, é preciso discutir projetos que permitam que o país avance. “Bolsonaro tem de aprender que negociação não significa corrupção”, diz o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-¬ministro de FHC. Mais economia, menos ideologia, é o que ele recomenda: “A retórica para manter a base atrapalha a relação com os outros eleitores. A única forma de estancar a perda de popularidade é com a retomada do crescimento”.

Bolsonaro precisa dar sinais de que pretende moderar o discurso. Mas, até agora, continua a se espelhar em seu ídolo, o presidente Donald Trump, que permanece há dois anos disparando mensagens pelo Twitter com o mesmo discurso hostil aos oponentes da época da campanha. As realidades brasileira e americana, no entanto, são diferentes . Trump herdou de seu antecessor, Barack Obama, uma economia em rota de crescimento e um governo muito bem estruturado. E o próprio Bolsonaro está muito longe do estilo de seu modelo: “Ele não é tão objetivo e contundente quanto Trump, sua inspiração, quando quer aprovar um projeto de seu governo”, diz José Álvaro Moisés, cientista político da Universidade de São Paulo.

A receita para que o governo recupere prestígio e popularidade não é especialmente complexa: contenção da retórica de palanque, empenho nas pautas fundamentais, disposição para ouvir e negociar, inclusive com opositores. Pelo que se viu até agora, parte desse receituário parece ir contra a própria natureza do presidente. A expectativa dos 200 milhões de brasileiros que votaram e que não votaram nele é que o governo corrija os erros. A ninguém interessa um governo popular e fraco, sem condições de implementar as medidas de que o país precisa para voltar ao trilho do crescimento. Essa possibilidade colocaria a todos — os que votaram e os que não votaram em Bolsonaro — em uma dolorosa travessia de quatro longos anos sem prosperidade.

Publicado em VEJA de 10 de abril de 2019, edição nº 2629

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