'Sem negociação, não há política', afirmou ex-presidente em debate na Brazil Conference, nos EUA
Patrícia Campos Mello / Folha de S. Paulo
BOSTON - O presidente Jair Bolsonaro diz que 1964 não foi golpe só porque ele não estava lá, disse o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso em palestra nesta sexta-feira (5) durante a Brazil Conference, evento organizado por alunos das universidades Harvard e MIT (Massachusetts Institute of Technology), em Boston, nos EUA.
Respondendo a uma pergunta, FHC mencionou o golpe militar de 1964 e emendou: “Agora não se pode mais dizer golpe, porque o presidente atual diz que não foi golpe, ele diz isso porque ele não estava lá”. Fernando Henrique foi perseguido e cassado durante o regime militar.
Nos últimos dias, o ministro da Educação, Ricardo Vélez Rodríguez, disse em entrevista que os livros didáticos passariam a refletir a visão de que 1964 não foi um golpe militar e, no último dia 31 de março, um vídeo com a mesma versão sobre os acontecimentos foi divulgado em canal oficial do Palácio do Planalto.
FHC participou de painel ao lado de Steven Levitsky, professor de estudos latino-americanos de Harvard e autor do livro “Como as Democracias Morrem”, e do cientista político Carlos Pereira, professor da FGV, e moderado por Frances Hagopian, professora de ciência política em Harvard.
Para o ex-presidente, há uma crise de liderança hoje e falta uma mensagem clara dos governos. “É preciso falar, é preciso ter uma mensagem. Hoje há uma crise de liderança, as pessoas não sabem falar.”
Ele também criticou a criminalização da negociação política necessária no presidencialismo de coalizão.
Segundo Fernando Henrique, um partido que se elege raramente tem mais de 20% dos deputados. “É necessário fazer coalizão, que implica divisão de poder, o que é sempre visto pelo público como algo escuso “, diz.
Isso se acentuou após o mensalão, que transformou a coalização em cooptação, compra de apoios, e a Lava Jato, que, para o tucano, expôs que a corrupção era parte de todo o sistema político.
“Isso tudo desmoralizou o sistema e criminalizou a negociação política, mas sem negociação, não há política; hoje é como se tudo fosse ato de corrupção”, afirmou o ex-presidente para um auditório lotado no MIT.
Ele ressaltou, no entanto, que é necessário o governo ter uma agenda clara, objetivos claros, para dividir o poder e governar com a coalizão.
“Isso requer que o presidente da República tenha habilidade para negociar com Congresso, tocar o Executivo e falar à nação; a pessoa nem sempre tem competência para todas essas diferentes funções”, disse, sem mencionar diretamente Bolsonaro.
Indagado pela moderadora se a democracia no Brasil estava mais ou menos forte do que há alguns anos, FHC afirmou: “Em geral a democracia se fortaleceu; se há risco? Sempre há risco; os riscos externos diminuíram, não temos mais a Guerra Fria, mas há os riscos internos, esses continuam como as tendências do Congresso de ocupar lugares, e de o Executivo não entender qual é seu papel".
O ex-presidente lembrou que tendência autoritária sempre existe, mas o outro lado tem uma tendência moderadora. “Hoje há muitos militares no poder, mas eles não querem mandar em tudo, como em 1964."
Embora se levantem preocupações a respeito do estado da democracia brasileira sob o governo Bolsonaro, o governo Lula (2003-2010) teve uma série de ameaças às instituições democráticas, defendeu o cientista político Carlos Pereira, que citou tentativas de acabar com a autonomia das agências reguladoras, diminuir o poder do Ministério Público e controlar a mídia.
“Mas quando o governo é de esquerda, a maioria das pessoas não vê isso como um atentado à democracia, quando o presidente é de direita, percebem como ameaça.”
A moderadora e Steven Levitsky discordaram, afirmando que não se pode dizer que o governo Lula não foi democrático.
Levitsky se mostrou muito preocupado com o ambiente de polarização extrema no Brasil, porque hoje em dia, segundo ele, oponentes políticos não se veem como participantes legítimos do jogo político.
Já Pereira ponderou que a polarização tem a sua função. “Uma pessoa que quer parar de fumar tem que fazer um rompimento com o cigarro, alguém que quer se separar da mulher faz uma radicalização, da mesma maneira, a polarização ajuda a enfrentar e arrumar uma estratégia de saída."
“O fundamental é que tudo se dê dentro dos procedimentos, que sejam cumpridas as regras do jogo", disse Pereira.
Nenhum comentário:
Postar um comentário