Paul Krugman
DEU NO ZERO HORA (RS)
A velha política econômica vodu a crença na magia do corte de impostos foi banida do discurso civilizado. O culto ao supply-side (redução de impostos dos mais ricos como instrumento de estímulo à economia) encolheu a tal ponto que agora engloba apenas excêntricos, charlatães e republicanos.
Mas reportagens recentes sugerem que muitos influentes, incluindo integrantes do Federal Reserve, reguladores do sistema bancário e, possivelmente, membros da recém-iniciada administração Obama, têm se convertido a um novo vodu: a crença de que, ao executar elaborados rituais financeiros, podem garantir sobrevida a bancos mortos.
Para explicar a questão, permitam-me descrever a situação de um banco hipotético que chamarei de Gothamgroup, ou Gotham, para abreviar. No papel, o Gotham tem US$ 2 trilhões em ativos e US$ 1,9 trilhão em dívidas, o que representa um patrimônio líquido de US$ 100 bilhões. Mas uma parcela substancial desses ativos – digamos, US$ 400 bilhões – é composta por títulos lastreados em hipotecas e outro tipo de lixo tóxico. Se o banco tentasse vender esses ativos, não ganharia mais de US$ 200 bilhões.
Logo, o Gotham é um banco-zumbi: continua operando, mas na realidade já está acabado. Seus papéis não estão totalmente sem valor – tem valor de mercado de US$ 20 bilhões – mas essa cifra é baseada na esperança de que os acionistas serão socorridos por um pacote de socorro do governo.
Por que o governo resgataria o Gotham? Porque o banco desempenha um papel central no sistema financeiro. Quando se permitiu que o Lehman Brothers falisse, o mercado financeiro congelou, e por algumas semanas a economia mundial tremeu à beira do colapso. Como não queremos que isso se repita, o Gotham tem de ser mantido em operação. Mas como isso pode ser feito?
Bem, o governo poderia simplesmente dar ao banco duas centenas de bilhões de dólares, o suficiente para volte a ser solvente. Mas, isso seria, é claro, um imenso presente aos atuais acionistas do Gotham – e também acabaria encorajando excessivas posições de risco no futuro. Mesmo assim, é a possibilidade de um presente desses que agora segura a cotação das ações do banco.
Uma abordagem melhor seria fazer o que o governo fez em relação às poupanças e empréstimos zumbis no final dos anos 80: se apropriou dos bancos mortos, eliminando os acionistas. Então, transferiu os ativos podres para uma instituição especial, o Resolution Trust Corp. Quitou débitos até que os bancos tivessem solvência novamente. Depois, vendeu as instituições sanadas para novos donos.
O atual zunzunzum sugere, contudo, que os responsáveis pela política econômica não estão dispostos a adotar essa abordagem. Em vez disso, eles estariam rumando para uma abordagem conciliatória: a de mover o lixo tóxico dos balanços dos bancos privados para uma instituição pública “ruim” ou “agregadora”, que poderia lembrar o Resolution Trust Corp. , mas sem que haja antes a apropriação.
Sheila Bair, presidente do Federal Deposit Insurance Corp. (agência federal dos EUA que tem a meta de garantir os depósitos bancários), recentemente tentou descrever o modo como isso funcionaria: “O banco agregador compraria os ativos por um valor justo.” Mas o que significa valor justo?
No meu exemplo, o Gothamgroup está insolvente porque os alegados US$ 400 bilhões de lixo tóxico que constam nos seus balanços valem na verdade US$ 200 bilhões. A única maneira de uma compra desse lixo tóxico por parte do governo tornar o Gotham solvente seria se pagasse muito mais do que os compradores da iniciativa privada estão dispostos a investir. Agora, talvez os investidores privados não queiram pagar o que esse lixo tóxico realmente vale.
– Nós não temos, atualmente, uma cotação racional para algumas dessas categorias de ativos – afirma Sheila.
Mas será que o governo deveria estar nesse negócio de declarar que sabe mais do que o mercado sobre o real valor desses ativos? E é provável que pagar o “valor justo”, seja isso o que for, servirá realmente para tornar o Gotham novamente solvente?
Suspeito de que os responsáveis pela execução das políticas estão se preparando para uma tentativa de engodo, possivelmente sem se dar conta disso: a adoção de medidas que se parecem com aquela faxina nas poupanças e empréstimos, mas que na prática equivalem a dar aos acionistas de bancos, às custas dos contribuintes, imensos presentes disfarçados de compra de ativos podres por “valor justo”.
Por que todo esse contorcionismo? A resposta parece ser que Washington continua tendo um medo mortal de um palavrão: nacionalização. A verdade é que o Gothamgroup e suas instituições-irmãs já são repartições do Estado, dependentes de auxílio do contribuinte. Mas ninguém quer adotar a solução óbvia: uma explícita, ainda que temporária, incorporação por parte do governo. Por isso, a popularidade do novo vodu, que postula, como eu disse, que elaborados rituais financeiros podem reanimar bancos mortos.
Infelizmente, o preço a pagar por esse retrocesso supersticioso pode ser alto. Espero estar enganado, mas suspeito que os contribuintes estão prestes a receber mais um negócio doloroso – e que devemos ter em breve outro plano de resgate financeiro que falha no seu intento.
New York Times News Service Paul Krugman é economista, Prêmio Nobel de Economia 2008, professor e colunista do The New York Times
DEU NO ZERO HORA (RS)
A velha política econômica vodu a crença na magia do corte de impostos foi banida do discurso civilizado. O culto ao supply-side (redução de impostos dos mais ricos como instrumento de estímulo à economia) encolheu a tal ponto que agora engloba apenas excêntricos, charlatães e republicanos.
Mas reportagens recentes sugerem que muitos influentes, incluindo integrantes do Federal Reserve, reguladores do sistema bancário e, possivelmente, membros da recém-iniciada administração Obama, têm se convertido a um novo vodu: a crença de que, ao executar elaborados rituais financeiros, podem garantir sobrevida a bancos mortos.
Para explicar a questão, permitam-me descrever a situação de um banco hipotético que chamarei de Gothamgroup, ou Gotham, para abreviar. No papel, o Gotham tem US$ 2 trilhões em ativos e US$ 1,9 trilhão em dívidas, o que representa um patrimônio líquido de US$ 100 bilhões. Mas uma parcela substancial desses ativos – digamos, US$ 400 bilhões – é composta por títulos lastreados em hipotecas e outro tipo de lixo tóxico. Se o banco tentasse vender esses ativos, não ganharia mais de US$ 200 bilhões.
Logo, o Gotham é um banco-zumbi: continua operando, mas na realidade já está acabado. Seus papéis não estão totalmente sem valor – tem valor de mercado de US$ 20 bilhões – mas essa cifra é baseada na esperança de que os acionistas serão socorridos por um pacote de socorro do governo.
Por que o governo resgataria o Gotham? Porque o banco desempenha um papel central no sistema financeiro. Quando se permitiu que o Lehman Brothers falisse, o mercado financeiro congelou, e por algumas semanas a economia mundial tremeu à beira do colapso. Como não queremos que isso se repita, o Gotham tem de ser mantido em operação. Mas como isso pode ser feito?
Bem, o governo poderia simplesmente dar ao banco duas centenas de bilhões de dólares, o suficiente para volte a ser solvente. Mas, isso seria, é claro, um imenso presente aos atuais acionistas do Gotham – e também acabaria encorajando excessivas posições de risco no futuro. Mesmo assim, é a possibilidade de um presente desses que agora segura a cotação das ações do banco.
Uma abordagem melhor seria fazer o que o governo fez em relação às poupanças e empréstimos zumbis no final dos anos 80: se apropriou dos bancos mortos, eliminando os acionistas. Então, transferiu os ativos podres para uma instituição especial, o Resolution Trust Corp. Quitou débitos até que os bancos tivessem solvência novamente. Depois, vendeu as instituições sanadas para novos donos.
O atual zunzunzum sugere, contudo, que os responsáveis pela política econômica não estão dispostos a adotar essa abordagem. Em vez disso, eles estariam rumando para uma abordagem conciliatória: a de mover o lixo tóxico dos balanços dos bancos privados para uma instituição pública “ruim” ou “agregadora”, que poderia lembrar o Resolution Trust Corp. , mas sem que haja antes a apropriação.
Sheila Bair, presidente do Federal Deposit Insurance Corp. (agência federal dos EUA que tem a meta de garantir os depósitos bancários), recentemente tentou descrever o modo como isso funcionaria: “O banco agregador compraria os ativos por um valor justo.” Mas o que significa valor justo?
No meu exemplo, o Gothamgroup está insolvente porque os alegados US$ 400 bilhões de lixo tóxico que constam nos seus balanços valem na verdade US$ 200 bilhões. A única maneira de uma compra desse lixo tóxico por parte do governo tornar o Gotham solvente seria se pagasse muito mais do que os compradores da iniciativa privada estão dispostos a investir. Agora, talvez os investidores privados não queiram pagar o que esse lixo tóxico realmente vale.
– Nós não temos, atualmente, uma cotação racional para algumas dessas categorias de ativos – afirma Sheila.
Mas será que o governo deveria estar nesse negócio de declarar que sabe mais do que o mercado sobre o real valor desses ativos? E é provável que pagar o “valor justo”, seja isso o que for, servirá realmente para tornar o Gotham novamente solvente?
Suspeito de que os responsáveis pela execução das políticas estão se preparando para uma tentativa de engodo, possivelmente sem se dar conta disso: a adoção de medidas que se parecem com aquela faxina nas poupanças e empréstimos, mas que na prática equivalem a dar aos acionistas de bancos, às custas dos contribuintes, imensos presentes disfarçados de compra de ativos podres por “valor justo”.
Por que todo esse contorcionismo? A resposta parece ser que Washington continua tendo um medo mortal de um palavrão: nacionalização. A verdade é que o Gothamgroup e suas instituições-irmãs já são repartições do Estado, dependentes de auxílio do contribuinte. Mas ninguém quer adotar a solução óbvia: uma explícita, ainda que temporária, incorporação por parte do governo. Por isso, a popularidade do novo vodu, que postula, como eu disse, que elaborados rituais financeiros podem reanimar bancos mortos.
Infelizmente, o preço a pagar por esse retrocesso supersticioso pode ser alto. Espero estar enganado, mas suspeito que os contribuintes estão prestes a receber mais um negócio doloroso – e que devemos ter em breve outro plano de resgate financeiro que falha no seu intento.
New York Times News Service Paul Krugman é economista, Prêmio Nobel de Economia 2008, professor e colunista do The New York Times
Tradução: Eduardo Nunes
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