A defesa da descriminalização do uso pessoal da maconha como maneira de reduzir a demanda, feita pela Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia, provocou debates acirrados e certamente não encontrará um consenso fácil entre os governos da região. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso está no México para apresentar ao presidente Felipe Calderón o relatório final, a fim de tê-lo como um intermediário a favor de uma política mais liberal de combate às drogas junto ao novo governo dos Estados Unidos.
Com uma crescente presença de cartéis das drogas permeando a sociedade e fazendo com que a violência da disputa pelo mercado coloque em risco a segurança pública no vizinho México, a questão tornou-se também uma prioridade para o governo dos Estados Unidos, e por isso a importância de ter o país como parceiro nesse esforço para mudar o paradigma da luta contra as drogas.
Há ainda por cima suscetibilidades políticas diante da nova dimensão do problema. Embora estivesse marcada para se realizar na Cidade do México, a reunião da Comissão foi transferida para o Rio, mas as autoridades mexicanas não admitem que tenha sido a impossibilidade de garantir a segurança dos membros da comissão, entre eles ex-presidentes de Brasil, Colômbia e México, a razão da mudança, como escrevi na coluna de ontem.
Apontam a presença do ex-presidente Fernando Henrique no país para tratar do assunto como sinal de que a situação não é tão grave quanto descrevi. De fato, os organizadores do encontro não alegaram expressamente a falta de segurança, mas sim um "ambiente pesado" que não favoreceria a discussão.
Questões semânticas e diplomáticas que não escondem a gravidade da situação, mas, ao contrário, apontam para a necessidade de uma mudança nos conceitos de combate ao tráfico, estabelecidos nos anos 70 do século passado.
Um dos estudos mais aprofundados sobre a maconha e sua penetração na sociedade moderna foi realizado pela Fundação Beckley, da Inglaterra, uma instituição devotada a estudos científicos que melhorem a saúde mental e fortaleçam a criatividade e o bem-estar. Uma das principais razões da existência da fundação é a busca de uma regulamentação a nível global de substâncias psicoativas.
Uma comissão formada por especialistas em diversas áreas apresentou as conclusões de seu estudo num seminário realizado no Parlamento inglês, em outubro do ano passado. Sendo a maconha a droga mais usada no mundo, atingindo cerca de 4% da população adulta mundial, a Fundação se concentrou nos seus perigos e nas vantagens de um novo tipo de abordagem do problema, o mesmo caminho trilhado pela Comissão Latinoamericana.
Segundo esse estudo de especialistas internacionais, a probabilidade e a dimensão de ameaças a usuários constantes da maconha são "modestas" comparadas com as causadas por várias outras substâncias, legais e ilegais, como álcool, tabaco, anfetaminas, cocaína e heroína.
Há, ao mesmo tempo, inúmeros efeitos nocivos à saúde do usuário da maconha, entre eles problemas respiratórios, cardíacos e até mesmo câncer. Além disso, a maconha provoca também mudanças de comportamento que podem prejudicar o aproveitamento do usuário na escola, o desajuste no trabalho e nas relações familiares.
Motoristas que dirigem sob o efeito da maconha são mais propensos a provocar acidentes; o uso contínuo pode provocar sintomas psicóticos e cerca de 10% dos usuários podem desenvolver uma dependência da droga. Por isso, a necessidade de se colocar a questão do ponto de vista de saúde pública, mais do que meramente criminal.
Analisando as políticas repressivas que vêm sendo adotadas nos últimos anos, o documento da fundação inglesa diz que a fundamentação para penas severas por posse de maconha "é fraca, tanto em termos normativos quanto na prática".
Em muitos países desenvolvidos, diz o documento, a maioria dos adultos nascidos no último meio século já experimentou a maconha. "Criminalizar o usuário é uma intrusão na privacidade, divisora socialmente e cara. É preciso considerar alternativas".
O documento ressalta que medidas para reduzir as penalidades ou descriminalizar o uso da maconha já estão sendo adotadas em vários países, e não houve um crescimento do consumo.
Há claras vantagens para os governos ao adotarem um regime de liberação controlada pelos vários mecanismos existentes, como taxação, controle do acesso, idade mínima para a compra (como para as bebidas alcoólicas e o cigarro), selos de qualidade e limite de potência, afirma o estudo inglês.
A alternativa, para a Fundação Beckley, seria autorizar a plantação própria em pequena escala, para uso pessoal. Na Holanda e na Espanha já existe essa possibilidade, limitada a duas a cinco plantas por pessoas. O documento sugere que os países que pretendam permanecer dentro da atual legislação internacional, deveriam pelo menos minimizar as consequências da proibição legal, não havendo razão para encarcerar o usuário, pois a polícia deveria ter outras prioridades.
As penas deveriam ser alternativas, como a de serviços comunitários, e as multas apenas simbólicas, sempre sem utilizar o sistema criminal. Para os países que desejem mudar a atual legislação, o documento sugere que o governo que pretenda tornar a maconha legalmente acessível deveria controlar a produção e distribuição da droga.
O controle seria feito pelo governo atuando diretamente ou licenciando empresas sob sua supervisão restrita, controlando a qualidade do produto e sua potência, restringindo o acesso, o uso e proibindo a propaganda, como nas políticas antitabagistas que estão conseguindo reduzir o fumo no mundo.
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