Crises lá fora costumavam ter impactos muito fortes aqui no Brasil, e não faz muito tempo. A crise do México, em 1994/95, abalou a confiança no real, então uma jovem moeda com menos de um ano de idade.
No segundo semestre de 1997, foi a vez de a crise no Sudeste Asiático forçar uma tremenda alta nos juros e reduzir ainda mais o ritmo da economia brasileira, que já crescia pouco. Um ano depois, era a Rússia em crise que instaurava o tremor de uma crise cambial e de um calote na dívida.Em vários sentidos, a crise de 2008 e 2009 foi muito pior que essas todas. Uma recessão nos Estados Unidos e na Europa tem muito mais impacto na economia mundial do que uma crise na Tailândia e na Coreia. De fato, essa crise levou a uma drástica redução no crescimento da economia global. As crises dos anos 1990 no México, na Coreia ou na Rússia tiveram muito menor impacto.
Contudo, a sensação que se tem é que as crises estão tendo um impacto menor por aqui. Sim, a crise financeira que se abateu sobre os países mais ricos influenciou nossa economia: o crescimento do PIB brasileiro foi de cerca de 4% ao ano em 2008 para 0% em 2009. Mas o ano de 2010 praticamente recuperou o tempo perdido e em 2011 estamos de volta ao nível esperado de crescimento de 4% ao ano. Drásticas quedas nas bolsas de valores europeias e americanas continuam tendo um forte impacto no Brasil e uma recessão grande por lá vai certamente afetar a atividade econômica aqui, mas o efeito parece ser bem menos dramático do que no passado.
A dívida líquida externa do setor publico é negativa e o estoque da dívida corresponde a menos de um ano de exportações
Isso tudo é verdade? Se for, temos motivos para ficar confiantes em que a economia brasileira não vai sofrer tanto se houver uma nova recessão global. Mas o que explicaria o menor impacto das crises de hoje sobre a economia brasileira?
Há várias explicações possíveis. Uma é baseada nas informações geradas pelas crises. A ideia é a seguinte: uma crise em um país revela informações para os agentes econômicos e passa a informação de que a economia do país em crise não está funcionando tão bem quanto pensávamos. Por exemplo, uma crise no México pode realçar a instabilidade política daquele país ou a dificuldade de se resolver os problemas de fundo que causam inflação. A crise no Sudeste Asiático pode mostrar ao mundo que segurar um câmbio fixo é difícil e que o ajuste à mudança é mais custoso do que achávamos.
Consequentemente, a crise no México pode ter levado investidores e analistas a revisar suas impressões sobre o Brasil, assim como a crise no Sudeste Asiático pode ter realçado os problemas do regime de câmbio brasileiro da época. No caso da Rússia, dizia-se que a crise havia ensinado aos investidores um pouco sobre o FMI, e esse aprendizado indicaria que as chances de o FMI interferir para evitar um possível calote na dívida brasileira era menor do que se pensava. Histórias como essas podem ter levado investidores a mudar suas posições com relação às chances e às consequências de uma crise no Brasil.
Por outro lado, a crise financeira de 2008 e 2009 trouxe menos informações relevantes sobre a economia brasileira. Enquanto nos Estados Unidos o problema era que o sistema financeiro estava muito alavancado, aqui o sistema financeiro ainda era pouco desenvolvido, o volume de crédito era muito baixo. Aliás, o volume de crédito tem crescido muito no Brasil, e o Banco Central tem tentado evitar um crescimento muito rápido por conta do aprendizado que a crise proporcionou.
Muitos analistas acreditam que a crise de 2008 acabou mostrando aos investidores que o Brasil era mais resiliente do que pensávamos. O Brasil foi um dos primeiros países a se recuperar da crise, o que fez o mercado de ações disparar: o aprendizado se reflete nos preços dos papéis. Parte do otimismo com a economia mundial agora parece ter sido prematuro, e por isso os mercados do mundo inteiro estão despencando.
A crise do momento também não ensina muito sobre o Brasil. A instabilidade política nos Estados Unidos não nos faz reavaliar a nossa situação política. Os percalços dos europeus com a moeda única e a impossibilidade de desvalorizar o câmbio revelam os problemas daquele arranjo, mas não dizem nada relevante sobre o cenário macroeconômico brasileiro.
Aliás, outras explicações para o menor efeito das crises aqui estão ligadas ao cenário macroeconômico brasileiro. Com o euro, a moeda dos gregos e dos portugueses não pode se desvalorizar. Uma desvalorização cambial reduz os salários e preços no país. Isso reduz o poder de compra dos habitantes do país no mercado internacional, mas os ajuda a exportar e receber recursos do exterior. Com a moeda única, essa "desvalorização" só pode ser obtida com uma queda nominal na renda de todos, e é muito difícil coordenar essa mudança. Assim como o horário de verão faz todo mundo acordar uma hora mais cedo sem que tenhamos que mudar nossos horários, a desvalorização cambial reduz a renda de todos sem que tenhamos que mudar os salários.
No Brasil, o câmbio flutua. As oscilações do câmbio atrapalham nossa vida: às vezes o real está caro demais, em outros momentos está muito desvalorizado. Essa é a desvantagem do câmbio flutuante. A grande vantagem é que essas oscilações nos ajudam a reagir aos choques internacionais, e nos momentos de crise essa vantagem é importantíssima. Ao meu ver, a Comunidade Europeia é uma excelente ideia, mas o euro não é - ou, pelo menos, veio cedo demais.
Além disso, nos anos 1990, o Brasil tinha muita dívida, e em dólar. Isso mudou muito. A dívida líquida externa do setor publico é negativa, o estoque da dívida equivale a menos de um ano de exportações (era cerca de 5 no final dos anos 1990; as exportações aumentaram muito). E a dívida pública, na maior parte, não está indexada ao dólar. Antes, se o real se desvalorizasse, o valor em reais da dívida do governo indexada ao dólar aumentaria, sem efeitos correspondentes nos impostos que o governo arrecada. Assim, uma grande desvalorização do real teria efeitos fiscais sérios. Não há mais esse círculo vicioso.
A economia brasileira hoje é mais aberta. Assim, está mais sujeita a choques provenientes de vários países, pois transacionamos mais. Certo? Sim, mas cada choque tem muito menos impacto nos preços relevantes para nossa economia. Suponha que o país importe e exporte apenas um bem. Se o preço do bem importado dobra, ou se passa a importar metade do que se importava ou será necessário dobrar as exportações.
Quando se importam e exportam muitos bens, o fato de um dos bens dobrar de preço requer um aumento modesto nas exportações e, por conseguinte, um ajuste muito menor no câmbio. Em linhas gerais, em uma economia mais diversificada, choques são mais frequentes, mas é mais fácil reagir a eles.
Por fim, se a crise acabar afetando a atividade econômica no Brasil, há muito espaço para reagirmos. Os juros estão muito longe do ponto em que não se pode mais baixá-los (zero), os compulsórios são enormes e as reservas astronômicas. Claro, uma grave recessão nos Estados Unidos e na Europa teria impactos aqui, mas há motivos para acreditar que esses impactos serão como foram nos últimos três anos: significativos sim, mas não tão dramáticos.
Escuto às vezes que, agora, os países emergentes estão liderando a economia mundial e os países ditos desenvolvidos estão ficando para trás. Não é bem assim. A economia dos países emergentes tem crescido muito mais que a dos países ricos, mas os emergentes ainda são bem mais pobres - assim como um bebê cresce muito mais que um adulto, mas é muito menor. Estima-se que o produto per capita dos Estados Unidos seja ainda mais de 4 vezes o produto per capita brasileiro e mais de 6 vezes o produto per capita chinês. Crescer 5% a mais ou a menos em um determinado ano não vai mudar essa realidade do dia para a noite. Habitantes dos Estados Unidos e da Europa, em média, continuarão desfrutando de um nível de vida bastante superior ao dos chineses e dos brasileiros por bom tempo.
Ainda temos muito que crescer. Há muito que fazer para tornar nossa economia mais dinâmica e eficiente. Mas isso é assunto para outro dia.
Bernardo Guimarães é professor da Escola de Economia de São Paulo - Fundação Getúlio Vargas (EESP-FGV)
FONTE: VALOR ECONÔMICO
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