sábado, 18 de fevereiro de 2012

Nobel militante: o ativismo antinuclear de Kenzaburo Oe

Aos 77 anos, o mais premiado escritor japonês, vencedor do Nobel de 1994, lidera protestos populares contra energia nuclear no país

Em “14 contos de Kenzaburo Oe” (Companhia das Letras, tradução de Leiko Gotoda), última obra do escritor japonês lançada no Brasil, o isolamento é uma marca comum entre os personagens centrais. Enquadrados por uma sociedade que tem dificuldades em lidar com deficiências, eles se calam ou enlouquecem. Aos 77 anos, o ganhador do Nobel de Literatura de 1994 não aceita o silêncio e se agarra à realidade, levantando a voz contra o que classifica como injustiças num país onde explosões de indignação são pouco frequentes. Ele considera o ativismo tão fundamental em sua existência quanto sua ficção e cravou um nome trágico na lista de temas que o atormentam: Fukushima.

A defesa dos sobreviventes da bomba atômica, do povo de Okinawa (que divide sua ilha com tropas americanas há seis décadas) e de uma Constituição pacifista guiou a trajetória de um homem que viu seu país ser humilhado na Segunda Guerra, reerguendo-se de forma impressionante. No caminho da prosperidade, o Japão varreu muita poeira para debaixo do tapete, mas Kenzaburo Oe está sempre remexendo no pó. O acidente nuclear de Fukushima, que completa um ano em março, fez o escritor voltar a marchar nas ruas de Tóquio este mês em nome de uma causa.

Os óculos redondos e a cabeleira branca de Kenzaburo Oe, perfeitos para uma caricatura, têm se misturado a pessoas comuns, principalmente mulheres com filhos pequenos, em manifestações antinucleares como a que ocorreu no último sábado, no centro da capital japonesa. Banais na Europa, os protestos contra as usinas produzem cenas inéditas no Japão, que convivia em paz com os reatores há 40 anos, até que a tsunami de 11 de março de 2011 esfacelou o mito da segurança das centrais. Oe, um dos líderes do movimento pelo fechamento das usinas, não teme comparar a herança de Hiroshima — cidade que transformou sua vida e sua literatura — com a da radiação que se espalhou pelo Nordeste do país após o terremoto. São duas tragédias que deixam marcas em gerações futuras. Subestimar a segunda é um desrespeito ao sofrimento dos que suportaram a primeira, diz ele:

— Temos que olhar para Fukushima do ponto de vista ético, e não apenas com base em fundamentos políticos e econômicos. A recente decisão da Alemanha de abolir a energia nuclear foi tomada a partir das recomendações de um grupo cujo nome era Comitê de Ética. Trata-se de uma obrigação moral: assegurar a um povo o direito de viver em paz — disse Oe durante entrevista coletiva realizada em Tóquio, no dia 8, para explicar o movimento “Adeus usinas nucleares”, fundado por pensadores japoneses.

Engajamento começou com visita a Hiroshima em 1963

O engajamento político de Oe — que ele próprio classifica como uma “conversão desprovida de qualquer significado religioso” — começou no verão de 1963. Aos 28 anos, o escritor já era apontado como um talento comparável ao lendário Yukio Mishima, autor de “Confissões de uma máscara” (1948) e “O templo dourado” (1956), mas sentia-se perdido, sem ter muito o que dizer. O jovem Kenzaburo acabara de ter seu primeiro filho, Hikari, que nasceu com uma hérnia cerebral e tinha poucas chances de sobreviver. Em meio ao pior momento de sua vida, aceitou acompanhar um congresso de organizações pacifistas que se reuniriam em Hiroshima, 18 anos após o bombardeio atômico.

Foi a primeira vez que Oe, nascido num vilarejo da ilha de Shikoku, pisou na cidade, dividida entre uma reconstrução frenética e o desespero dos efeitos radioativos sobre seus moradores, muitos deles atingidos por doenças que só se manifestaram tempos depois do cogumelo atômico. O encontro com os sobreviventes e a inspiração que tirou dessas histórias de coragem para suportar o sofrimento do próprio filho — que está vivo e, apesar das deficiências, se transformou num compositor brilhante — seriam, para sempre, a base de uma das mais importantes obras literárias da história do Japão.

“Em lugares onde nenhuma esperança de vida poderia ser encontrada, ouvi vozes de pessoas — pessoas sãs e firmes — que seguiam em frente lentamente, mas com vontade genuína. Acredito que foi em Hiroshima que tive a primeira percepção concreta da autenticidade humana. E foi lá, também, que vi o mais imperdoável dos enganos. Mas o que pude discernir, mesmo que levemente, foi apenas uma pequena parte de uma realidade incomparavelmente mais abominável, ainda escondida na escuridão”, escreveu Oe em “Notas de Hiroshima” (1965), seu ensaio mais famoso, inédito no Brasil.

Um ano antes, em 1964, ele havia publicado o belo e desconcertante “Uma questão pessoal” (lançado no Brasil em 2003 pela Companhia das Letras), sobre um pai que vê o filho nascer com uma deformação cerebral e deseja a sua morte. Os pensamentos amorais acabam vencidos pelo protagonista, que aceita, com todo o amor do mundo, a vida da criança e a maturidade, não como um herói, mas como um ser humano imperfeito. Os traços autobiográficos do romance nunca foram segredo, e a imagem do filho com uma anomalia voltaria em outras novelas e contos.

A relação entre Hiroshima e Fukushima é um assunto incômodo para a maioria dos japoneses, pouco dispostos a discutir seus traumas abertamente. Oe, porém, cutuca feridas com um discurso sem sentimentalismo, mas também sem agressividade. Usa a mesma definição hibakusha, que significa “pessoa afetada pela radiação”, uma palavra carregada de estigma na língua japonesa — para se referir tanto às vítimas da bomba quanto às da usina.

— Desde o fim da ocupação americana, sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki formaram associações que têm sido bastante ativas em sua determinação de não permitir novas vítimas da radiação. Mas agora vimos novos hibakushas surgirem, provavelmente expostos a uma contaminação que terá consequências no futuro, e isso provoca uma grande angústia — disse Oe.

No ano passado, Tóquio registrou o maior protesto popular desde as manifestações estudantis dos anos 1960. Cerca de 60 mil pessoas marcharam contra as usinas, para que o pesadelo de Chernobyl não volte a ocorrer no Japão. Oe, a quem os japoneses se referem como Oe-sansei, acrescentando ao sobrenome a palavra “mestre”, estava entre elas. Havia vários artistas presentes, mas foi o discurso de uma moradora de Fukushima que o marcou.

— Ela disse que o coração da população de Tohoku (região devastada pela tsunami) está tomado por demônios furiosos, referindo-se a almas torturadas pela raiva — disse o escritor, que, como todo japonês, sabe que terremotos são uma certeza num dos solos mais instáveis do planeta. — Se continuarmos no caminho atual, veremos um novo acidente nuclear ocorrer. Não há razões lógicas para dizer que Fukushima não se repetirá.

Mais uma vez ele volta às lições do passado para explicar por que acredita que o Japão precisa tomar rapidamente a difícil decisão de abrir mão de suas usinas, responsáveis por 30% da energia consumida pela terceira maior economia do mundo.

— Depois da Segunda Guerra, em meio à pobreza e ao caos, adotamos uma Constituição pacifista. Em seu texto, a expressão “nós decidimos” aparece duas vezes. Decidimos nunca mais entrar numa guerra e decidimos promover a paz mundial. Talvez o governo japonês não tenha sido totalmente fiel a essa determinação, mas respeitou a decisão de nunca produzir bombas atômicas e nem exportar armas. Apesar do sofrimento, aprovamos essa lei maravilhosa, com base no poder de decidir. Por isso é importante que possamos decidir de novo, como um povo, um futuro melhor — declarou.

“Se não acreditasse nisso, eu não estaria aqui”

As roupas informais — camisa preta com blazer cinza — e o sorriso tímido dão ao senhor de quase 80 anos um ar desprentensioso e simpático. O Nobel de Literatura, concedido em 1994, não fez de Kenzaburo Oe um nome tão popular quanto o de seu colega Haruki Murakami, que atinge uma massa maior de leitores de todas as nacionalidades, com um estilo simples, mais fácil de ser traduzido, e cosmopolita. O prêmio tampouco fez dele uma unanimidade.

A direita, por exemplo, detesta Oe, por ele ter recusado a maior honraria artística do país, o Bunka Kunsho, ou Ordem da Cultura, entregue pelo imperador. O escritor relaciona a adoração ao monarca — que até 1945 era considerado uma divindade — às atrocidades cometidas pelos japoneses na Ásia na primeira metade do século XX. Antes disso, já havia enfurecido os conservadores, o escritor Yukio Mishima entre eles, por causa do conto “Seventeen”, baseado no assassinato de um líder socialista por um estudante suicida. A história lhe rendeu ameaças dos extremistas, mas intelectuais de esquerda tampouco gostaram, por acreditarem que Oe, ao retratar um menino massacrado e solitário, foi condescendente com o fanatismo.

No encontro com jornalistas às vésperas de mais um protesto antinuclear em Tóquio, Oe respondeu a todas as perguntas com gentileza, mas não pareceu disposto a aceitar as teses da imprensa estrangeira que se surpreende com a passividade dos japoneses e sua aparente incapacidade para se revoltar e mudar as regras do jogo.

— Vivemos numa democracia há 60 anos e isso provocou mudanças. E hoje não enfrentamos questões abstratas, mas problemas práticos, como garantir o futuro de nossos filhos. Minha esperança é a de que as pessoas estejam desenvolvendo um novo senso de ética. Se não acreditasse nisso, eu não estaria aqui — afirmou.

“No final das contas, a vida exige de nós uma atitude ortodoxa. Mesmo que se queira ceder à tentação da falsidade, com o tempo a vida nos obriga a rejeitá-la”, diz o protagonista que se redime em “Uma questão pessoal”.

O pai de Hikari, nome que significa “luz”, é um otimista.

FONTE: PROSA & VERSO

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