A crise da esquerda é geralmente explicada com o ocaso da ideologia igualitária que marcou sua identidade desde as origens setecentistas e revolucionárias. Crise da esquerda, portanto, como um aspecto da crise da modernidade e dos seus mitos: o universalismo da cidadania e a impessoalidade da lei. No seu lugar vimos surgir recentemente duas soluções alternativas preocupantes: a solidariedade comunitária (apropriação identitária do bem-estar e dos direitos em nome do “nosso território”, da “nossa cultura” e da “nossa riqueza”) e a prioridade do interesse particular (seja ele econômico, de classe ou de território regional) sobre o geral. O tempo da política clássica parece ter se consumado; seus lugares, sua linguagem e suas finalidades parecem ter se rarefeito.
No entanto, o universalismo não desapareceu. Ele migrou para fora da política: por exemplo, para o mercado e a economia. Trata-se, como se intui, de outro universalismo. Globalização dos interesses econômicos e das competências financeiras, por um lado, e, quase como reação, localismo dos pertencimentos identitários e coletivos, por outro. O universalismo se transferiu da sociedade política para a sociedade civil, radicalizando o dualismo entre liberdade individual e liberdade política. Lendo o noticiário italiano e europeu destes meses, parece que o desafio da sociedade civil à sociedade política está destinado por ora a se concluir com a derrota da segunda: os “salteadores” tomaram o Estado. E o que acontecerá com a justiça social? Esta será distribuída (é o que alguns esperam) pela vontade benévola dos bons cristãos e das comunidades de fé ou assistenciais e beneficentes, não mais pelo direito e pelos órgãos de Estado.
Parece que a justiça social tomou o caminho da misericórdia ou da benevolência moral e religiosa (como bem se vê no programa dos republicanos americanos) e que o Estado não deve ter outro papel além de se ocupar da justiça civil e penal para proteger a esfera dos interesses privados. Crise da esquerda e crise do universo de valores e instituições que nutriram a democracia nas décadas passadas caminham juntas, orquestradas pela ideologia que apregoa o evangelho dos mercados que se autorregulam e sabem coordenar espontaneamente méritos e carecimentos, sem que seja necessária a intervenção programadora da lei. Imparciais porque automáticos. A sociedade civil reivindica sua centralidade diante da sociedade política: nesta transformação reside a fonte da crise da esquerda. Redistribuir recursos, desenhar estratégias de justiça social — como se dizia há alguns anos —, governar os processos sociais: tudo isso parece hoje arqueologia. Se existem valores universais, estes se transferiram para a dimensão do privado. Este cenário ajuda a compreender por que o liberalismo é hoje a ideologia vencedora, uma ideologia que é universalista exatamente lá onde o universalismo fez seu nicho.
Desde seu surgimento, o liberalismo expressou a dupla alma da modernidade: celebração do indivíduo e limitação da política e do Estado. Ele marchou ao lado da afirmação da prioridade da esfera civil — que é esfera dos direitos individuais e dos interesses — e da visão instrumental ou de coordenação das instituições políticas. O liberalismo é uma doutrina universalista que não é hostil ao particular. Aqui está sua força prometeica e sua extraordinária capacidade de adaptação, sua transversalidade; de fato, o antiestatalismo pode unir, e de fato une, movimentos que parecem muito distantes entre si, como católicos e federalistas etnocêntricos, para dar um exemplo italiano. A ideia transversal de que é necessária uma devolução das competências do Estado à sociedade civil faz concordarem liberais-liberistas e teólogos católicos. O paradoxo é só aparente, porque pôr o indivíduo no centro pode significar promover a comunidade e os pertencimentos locais, lugares nos quais a pessoa encontra estímulos para seguir o caminho da realização pessoal, mundana ou divina, mas também significa rede protetora que intervém quando o “infortúnio” econômico se abate sobre as pessoas como um deus cego.
Portanto, o que se deve fazer é retomar a reflexão sobre a identidade do liberalismo. Para compreender sua complexidade, para desarticular suas interpretações canônicas, para recuperar, enfim, aquele fôlego universalista e social a que a esquerda não pode renunciar. O liberalismo pode dar novas energias às visões emancipadoras. Este, também, um paradoxo da modernidade: a esquerda bate na porta daquele que seus pais fundadores marxistas consideravam o inimigo natural. Mas só é paradoxo, se se considerar a história da esquerda como se fosse uma história homogênea. Atribuir complexidade ao liberalismo implica, para a esquerda, recuperar a complexidade das suas próprias raízes. E as raízes da esquerda europeia e italiana são plurais e complexas.
Aquém da cortina de ferro
Recuperar a identidade complexa do liberalismo (e, como consequência, da esquerda) significa ajustar contas com a codificação que foi dada ao liberalismo (e, como consequência, à esquerda) no curso da segunda metade do século XX na Europa Ocidental, do lado de cá da cortina de ferro. O liberalismo foi canonizado como aquilo que, em 1958, Isaiah Berlin identificou com a “verdadeira liberdade”, a liberdade como não interferência e não impedimento por parte da lei, mesmo quando quem vota a lei são Parlamentos eleitos democraticamente. Um liberalismo que fundou a si mesmo na ideia de que a liberdade é licença e anarquia, é fazer o que individualmente se quer e escolhe, e que, portanto, todo obstáculo exterior a esta liberdade implica ausência de liberdade, limitação da escolha individual, ainda que necessária. A liberdade se dá onde a lei cala, não através da lei.
A lógica que orientou e orienta este liberalismo é a mesma que move as ações do homo oeconomicus: um indivíduo que, como a bola de bilhar no plano inclinado, seguiria por força de inércia se outros ou algo externo ao seu movimento não lhe obstruíssem o curso. A liberdade é aqui pensada como movimento no espaço e, sobretudo, em oposição a um obstáculo: a lei, a política, o Estado. A sociedade liberal assim imaginada será tão mais realizada quanto menor for o espaço ocupado pela política e pela esfera pública. Menos Estado/mais mercado: esta é a consequência pragmática do liberalismo que se contrapôs à ideologia social-democrata a partir dos anos da Guerra Fria. Como se lia no libelo de von Hayek, opressão e servidão são proporcionais à interferência da lei e é irrelevante saber se a lei goza de legitimação constitucional-democrática ou é dominação despótica; é irrelevante saber se quem interfere com as ações dos indivíduos é um Parlamento democraticamente eleito ou o Parlamento dos sovietes.
No final da era das ideologias, este é o núcleo teórico-político hegemônico do liberalismo contemporâneo. Este venceu a competição com a ideia da intervenção reguladora do Estado, mesmo quando o Estado é uma democracia constitucional. Um liberalismo que tem origem datada, mas não é datado: porque seu verdadeiro alvo, desde os anos da Guerra Fria, não foi tanto o comunismo soviético quanto a social-democracia ocidental: não Lenin, mas Thomas H. Marshall. A última grande batalha deste liberalismo da não-interferência é, portanto, a que está combatendo nestes meses contra aquele resíduo distributivo e de justiça social via Estado democrático que a modernidade também nutriu. Hoje, a trincheira da esquerda parece ser esta.
Difícil dizer se será sua grande derrota. Mas é certo que o renascimento da esquerda, tanto na Itália como na Europa, aparentemente terá de passar pela transformação do liberalismo. Com aquele liberalismo da soberania dos interesses privados a esquerda só pode perder. No entanto, sem ou contra o liberalismo, a esquerda não pode vencer e certamente está fadada a perder e até a desaparecer. O nó a ser desatado, pois, está aqui, na interpretação da liberdade e do liberalismo. A esquerda poderá ter esperança de vencer o desafio lançado pelo indivíduo privado ao cidadão, se souber formular uma interpretação da liberdade e do liberalismo que seja capaz de desafiar sua leitura hegemônica, aquela que vê a lei, o público e o Estado como obstáculos, limites a serem maximamente contidos ou superados.
O valor das liberdades
Recorramos aos grandes teóricos do liberalismo social do nosso tempo, por exemplo, Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia (mas marginal no trend contemporâneo governado pelas business schools) e teórico representativo da revisão do liberalismo da não-interferência, não para negá-lo, mas para fazê-lo interagir com outras liberdades. Sua perspectiva ideal é a mesma que compartilham outros grandes liberal-democratas e social-democratas do nosso tempo, John Rawls e Jürgen Habermas. Mas Sen adota uma estratégia metodológica diferente e que pode ser politicamente vitoriosa nesta fase de revisão liberista, porque construída a partir de uma gramática que é, ao mesmo tempo, normativa e utilitarista, universalista mas atenta ao contexto e às circunstâncias concretas nas quais as pessoas agem. O princípio — a liberdade individual — é conjugado por Sen não simplesmente através das instituições e dos procedimentos distributivos, mas também através do conhecimento das concretas e substantivas “capacitações (capabilities) dos indivíduos para viver o tipo de vida que valorizam e que têm motivo para valorizar”.
O “desenvolvimento pode ser visto como um processo de expansão das liberdades reais gozadas pelos seres humanos”. As liberdades, portanto, são plurais, têm custos e benefícios, são escolhas políticas que têm por objetivo o desenvolvimento do indivíduo em relação à sociedade na qual vive e opera. Um indivíduo que é um agente, que tem projetos e valores ideais e morais, e que usa os recursos econômicos como meios para realizá-los. Sen tenta uma operação corajosa: combinar a ideia de felicidade (Aristóteles) com a de interesse (Adam Smith), isto é, atribuir à economia um papel instrumental em vista de um “bem” qualitativo como o bem-estar, a felicidade ou a qualidade de vida.
A ideia de “capacitações” fica clara se se mantiver um nexo entre o conceito de individualidade como “florescimento” e “desenvolvimento” das capacidades individuais e a análise econômica dos “bens necessários” e das condições de vida de que tais capacidades necessitam para se expressarem da melhor forma. O bem individual é um componente do bem geral: as liberdades são um ganho para toda a sociedade. “A utilidade da riqueza está nas coisas que nos permite fazer, nas liberdades substanciais que nos ajuda a conseguir”, uma correlação entre meios e fins que não é nem simples nem uniforme, que é contextual e varia em relação à estrutura política e social de um país, que não renuncia a pensar em termos de conveniência, crescimento econômico e condicionamentos do desenvolvimento. Uma economia a serviço do bem-estar geral da pessoa.
A liberdade é um bem para o indivíduo porque é um bem para a sociedade, dizia John Stuart Mill: aumenta as capacidades e é vantajosa. Inversamente, a injustiça é “privação de liberdade”: negar a liberdade política, violar os direitos civis, suprimir os direitos sociais configura não só uma condição de imoralidade, mas é um obstáculo ao crescimento. Onde não há segurança quanto aos direitos, as trocas estão em risco, o empreendedorismo individual se frustra: é a sociedade toda que sofre as consequências disso, não só o indivíduo.
A ideia de liberdade como “capacitação” se contrapõe, por um lado, àquela “mais restrita” que nos vem do liberalismo econômico, ou seja, a identificação do desenvolvimento com “o aumento das rendas individuais, com a industrialização, com o progresso tecnológico ou com a modernização da sociedade”, e, por outro, a uma visão puramente negativa ou como não interferência por parte da lei. Ao contrário, propõe uma ideia de liberdade que está centrada numa filosofia social que se preocupa com a “felicidade” (como prometia a democracia americana no século XVIII, ao escrever ao Declaração de Independência). Portanto, a filosofia da esquerda pós-socialista pode ser rastreada no pensamento democrático, que é diferente tanto do liberismo econômico quanto do socialismo planificador, porque atento ao contexto e à opinião das pessoas (ao voto), em vez do dogma do mercado e da naturalidade das suas regras. O objetivo desta teoria do bem-estar é negativo, isto é, eliminar as iliberdades; por isso, não cai no erro de promover um Estado paternalista que nos diga em que consiste nossa felicidade, uma falha do ideal de justiça social que os liberais temem com razão. Os meios para concretizá-lo são positivos, ou seja, remover as condições que produzem as iliberdades.
Democracia como atenção às circunstâncias
A esquerda deveria recuperar plenamente a dimensão projetiva da política e fazer isso através da ideia de “desenvolvimento como liberdade”. É uma ideia revolucionária, na medida em que força os liberais a dizer explicitamente quais liberdades querem defender, isto é, qual visão do indivíduo têm e a quem esta visão pode ser estendida, quantos são ou quantos deveriam ser aqueles que gozam, efetivamente, da liberdade. O papel das circunstâncias é importante, porque importa reconhecer que nem todas as liberdades têm o mesmo peso em toda parte e seja de que modo for. Portanto, as liberdades são plurais, heterogêneas e, certamente, em conflito. A função da política é a de tomar decisões exatamente porque existe este conflito. E é aqui que direita e esquerda mostram suas diferenças. É aqui que quem se declara “moderado” deve se deter para esclarecer o que significa moderação numa sociedade que retira de muitos as capacidades de agir funcionalmente e de aspirar a uma vida digna.
Tomemos, como exemplo, o modo de entender algumas “liberdades instrumentais”, ou seja, as infraestruturas econômicas. Estas últimas são “possibilidades” dadas aos indivíduos de “utilizar recursos econômicos para consumir, produzir ou trocar”. Estas “possibilidades” dependem de várias circunstâncias: não só de quanto uma pessoa recebe mensalmente, mas também da riqueza nacional geral e da presença de importantes recursos, como o funcionamento das instituições públicas, a disponibilidade de acesso à cultura e à formação. Se, para obter um financiamento, devo corromper um funcionário, pertencer a um partido, submeter-me a uma organização criminosa, ser membro de uma comunidade religiosa ou ser homem e não mulher, então ter um salário decente não constitui para mim uma garantia de gozo efetivo da liberdade.
Substancialmente, minhas “possibilidades”, como pessoa que vive numa sociedade altamente evoluída, não são muito superiores às de uma pessoa que more numa sociedade menos evoluída e tenha uma renda inferior à minha. Eu, mulher italiana, deste ponto de vista, tenho uma expectativa de reconhecimento e de vida social satisfatória inferior ou não superior àquela de uma mulher que vive num país do Norte da Europa, porque, em relação aos recursos e às oportunidades que minha sociedade oferece, sofro maior privação de liberdade do que minha homóloga europeia do Norte. Além disso, sou também menos livre em relação a um homem italiano. Em outras palavras, sou mais “pobre” tanto em sentido absoluto quanto em sentido relativo, porque minha pobreza não é só econômica ou material, mas ligada intrinsecamente a fatores sociais, culturais e políticos. Sou mais discriminada, tenho menos reconhecimento social e político, tenho mais dificuldade para tornar efetivos os direitos que, no entanto, a lei me reconhece, sou humilhada nas minhas capacidades. Suprimo tempo e energia ao meu bem-estar e ao de toda a sociedade. Sou espelho da Itália: atarefada, insatisfeita, deprimida, paralisada para explorar minhas possibilidades.
A regra que se pode deduzir deste exemplo é a seguinte: considerar a liberdade seja como fim, seja como meio implicar perceber como as várias liberdades que temos não podem ser consideradas uma a uma, individualmente, porque os seres humanos, quando agem, colocam-nas em ação todas juntas. Portanto, o fato de que as liberdades criem um todo solidário é que é razão de liberdade, não o fato de que gozemos de uma liberdade em particular, por exemplo, a de vender e comprar. Assim, Sen pode explicar a pobreza nas zonas mais deserdadas do mundo, mas também a que cresce dentro de sociedades ricas, como as europeias. Se se examinasse só a renda per capita ou as instituições, esta injustiça real permaneceria invisível ou não determinante. Mas, se considerarmos outras formas de iliberdade — a ausência efetiva de possibilidades e de “capacitações”, como o esforço que uma mulher italiana realiza para ser respeitada na sua dignidade e reconhecida nas suas capacidades, etc. —, então a pobreza emerge como uma chaga das próprias sociedades liberais, não menos das ocidentais do que daquelas que dizemos estar em vias de desenvolvimento.
Ter escolas péssimas, distribuir a qualidade da instrução desigualmente e segundo as possibilidades econômicas ou a alocação geográfica dos recursos torna as mulheres italianas, os italianos meridionais ou os jovens de famílias não proprietárias menos livres do que seus concidadãos homens, nortistas e abastados. Pôr as mulheres na impossibilidade de ter um emprego fora da família torna as mulheres dos países ocidentais menos livres do que seus concidadãos homens, se à liberdade delas não se der o suporte de infraestruturas sociais. E, sobretudo, torna o país menos rico, porque impede muitos dos seus habitantes de fazer coisas que poderiam considerar como direito fazer e, ao mesmo tempo, empobrece a sociedade no seu conjunto, porque privada de recursos importantes.
Um desafio no terreno da coerência liberal
Esta visão de “sociedade justa porque livre” põe sob acusação o estrabismo daqueles liberais que fazem da modernização e da expansão da renda o único fator que mede a liberdade. Neste caso, são ignoradas as liberdades políticas e civis. Mas estas liberdades não imediatamente materiais e econômicas são “apropriadas”, porque sem elas a sociedade seria não só menos livre para muitos, mas também mais pobre, na medida em que muitos dos seus cidadãos encontrariam mais obstáculos para agir livremente e seu âmbito de ação seria mais restrito. É o “desenvolvimento difuso” ou a “liberdade difusa” que a esquerda deve considerar, um conceito que Carlo Rosselli expressou com estas palavras: “Entre uma liberdade média estendida ao universal, e uma liberdade sem limites assegurada a poucos, em detrimento de muitos, melhor, cem vezes melhor, uma liberdade média”.
Insistir nas possibilidades efetivas de liberdade nos induz a corrigir a teoria clássica da social-democracia, porque nos ensina que o problema não é simplesmente defender a liberdade nas normas e nas instituições distributivas, mas fazer com que a liberdade tenha um valor para as pessoas que a vivem e um significado para nós que concretamente a usamos. “A liberdade — continua Rosselli —, não acompanhada e sustentada por um mínimo de autonomia econômica, pela emancipação em relação ao freio das necessidades essenciais, não existe para o indivíduo, é um mero fantasma”. Neste sentido, quando se fala de liberdades no plural, a distinção entre liberdade como meio e como fim é sempre relativa, nunca absoluta.
Estas são as premissas que devem convencer a esquerda a desafiar o tabu das políticas anti-inflacionárias e a dar centralidade ao emprego e aos serviços sociais, a considerar as infraestruturas um vetor de riqueza e de liberdade. Os críticos liberistas ou de direita opõem ao Welfare clássico uma interpretação do Estado Social do ponto de vista das necessidades dos clientes. Sen ensina-nos a pôr em dúvida a eficácia e a governabilidade de uma oferta de assistência sanitária ou instrução baseada num controle das necessidades ou dos meios econômicos dos clientes (ensina-nos a contestar a eficácia da política de vouchers, que tanto agrada a diversos católicos-liberais entre nós e que orientou a reestruturação do Estado Social na Lombardia).
O ceticismo de Sen é ditado por razões realistas e pragmáticas: a informação sobre as “incapacitações” de uma pessoa, ou seja, sobre suas condições econômicas em relação ao bem saúde ou instrução (para os quais se propõe o voucher), não é nada objetiva e economicamente fácil de fazer. Além disso, muito mais facilmente do que o universalismo do Welfare, esta estratégia pode gerar corrupção, morosidade burocrática e discriminação. De fato, fornecer um serviço na forma de voucher, ou seja, monetizá-lo em relação à efetiva disponibilidade econômica de quem dele precisa, implica que o poder público deva monitorar direta e constantemente as reais disponibilidades econômicas dos potenciais fruidores de vouchers (com uma ingerência na privacy que é grave e verdadeiramente lesiva das liberdades individuais); por fim, pressupõe uma condição que, como sabem os italianos, não é nada óbvia, a saber, que não haja evasão fiscal, ocultamento das informações sobre os efetivos recursos econômicos e abusos clientelistas. Personalizar a oferta dos serviços — como faz a política dos vouchers — implica aumentar os riscos de disfunção, abuso, corrupção e discriminação, ao mesmo tempo que necessariamente deve interferir mais na vida das pessoas.
A forma do Estado Social, portanto, pode fazer a diferença. Sen escreve: “Quando a ajuda social é concedida com base no diagnóstico direto de uma necessidade específica (por exemplo, depois de se verificar que uma pessoa está afetada por uma determinada doença) e é ofertada diretamente, na forma de serviços específicos e intransferíveis (como uma terapia para aquela enfermidade particular), reduz-se em medida significativa a possibilidade de uma distorção da informação [...]. No entanto, ocorre exatamente o contrário quando se financiam cuidados médicos concedendo dinheiro que se pode usar livremente, o que requer monitoração mais direta. Deste ponto de vista, a oferta direta de serviços, como a assistência médica e a instrução, está menos exposta a abusos” e é menos dispendiosa.
O Estado Social que se apoia em acordos entre o público e os fornecedores privados de serviços pode ser, então, o caminho para novas desigualdades, ao mesmo tempo que, como sabemos, não ajuda de modo algum a aliviar a despesa pública e, sobretudo, grava sobre o poder regulador do Estado, com a eventualidade de procedimentos privilegiados obtidos como favores (corrupção). O controle das condições econômicas efetivas da pessoa que deverá receber subvenção e, ademais, da qualidade do serviço fornecido pelos particulares conveniados é gerador de burocracia e custos de gestão, como os sistemas médicos e escolar americano estão demonstrando (para reformar tais sistemas, o presidente Obama mobilizou a ideia da igualdade das condições de liberdade).
A esquerda deve desafiar os teóricos da monetização dos serviços precisamente em nome da eficiência do mercado e das liberdades das pessoas: isso pode torná-la atual, fundamentada e persuasiva. Os direitos sociais instituídos pelo universalismo do Welfare de base são estruturas não mercantis, que ajudam o mercado porque geram “capacitações” e criam possibilidades de liberdade; ou seja, são oportunidades de crescimento econômico e segurança social. Portanto, os direitos são investimentos, e as políticas que visam a criar uma equânime distribuição dos recursos não são só moralmente justas, mas também economicamente vantajosas. Esta é a mensagem que uma esquerda democrática europeia deveria metabolizar e propor: uma mensagem que tem seus fundamentos no liberalismo e na economia de mercado. Aqui reside sua força e a razão do seu valor. Força e valor de uma esquerda que não se resigna a sucumbir à ideologia do liberalismo liberista e não renuncia a dar à política o próprio papel dirigente e a própria dignidade, em nome da igual liberdade.
Nadia Urbinati é professora de Teoria Política na Columbia University, de Nova York. Artigo publicado em Italianieuropei, 5/6, 2013, p. 141-51.
Fonte: Italianieuropei &Gramsci e o Brasil.
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