O cemitério paulistano do Araçá, na Consolação, foi invadido na madrugada do domingo passado. 21 estátuas, dois carros elétricos e uma capela ficaram danificados. Algumas das estátuas tombadas eram de bronze e mármore de Carrara, trazidas por famílias da Itália.
As decapitações desses dias em São Paulo e no Maranhão nos levam de volta a graves problemas fundamentais da sociedade brasileira. Em São Paulo, 30 homens, entre 25 e 30 anos de idade, vestidos de preto, invadiram numa madrugada o Cemitério do Araçá e fizeram um estrago enorme. Destruíram esculturas, arrancaram a cabeça de algumas, profanaram a capela, violaram túmulos. Uma ação claramente dirigida contra o sagrado. Intolerância religiosa, descrença ativa e militante contra os que têm da morte uma concepção religiosa e de respeito. Mas também deboche pela morte e pelos mortos, valentia de quem só age no escuro e às ocultas. Como na pichação da escultura de Carlos Drummond de Andrade no Rio de Janeiro. Em São Luís do Maranhão, presos do presídio de Pedrinhas comandaram o que seu líder mesmo definiu como chacina, em alerta preventivo, por telefone, à própria mãe: que não saísse às ruas nos dois dias seguintes. Ônibus foram depredados e incendiados, num deles com feridos graves, incluída uma menina que veio a falecer em consequência. Seguiu-se a morte e decapitação de presos por parte dos próprios detentos. Violência contra coisas e pessoas, mas também contra identidades. Decapitar e mutilar na religiosidade popular condena a vítima ao limbo e à perdição.
A comparação desses dois episódios diferentes e extremos ajuda a compreender essas e outras ocorrências, seus motivos. De um lado, no vandalismo do cemitério os vândalos têm uma identidade grupal e querem mostrá-la. Querem dizer alguma coisa. São ativistas de uma causa. Atacam a sociedade ao atacar seus símbolos, aquilo que a representa. Estão em conflito com o que julgam representado pelo que destruíram.
No Maranhão, os autores intelectuais e materiais da chacina nas ruas e no cárcere dizem quem são, identificam o inimigo, identificando-se simbolicamente. Dirigem-se a quem possa vê-los. Os presos filmaram os decapitados, mostrando a cara dos mortos e ocultando a cara dos vivos. Os mortos aparecem com as cabeças decepadas; os vivos, como vozes, pernas e braços em movimento. Há aí um detalhe: os mortos mostrados são brancos, os participantes são predominantemente mulatos e pardos. A polícia prendeu uma dúzia de pessoas fortemente suspeitas. Há no grupo brancos e não brancos, todos jovens, mais não brancos do que brancos. Os autores das decapitações na cadeia e da chacina nas ruas de São Luís agem porque supostamente incomodados com a presença da Força Nacional de Segurança num presídio que já estava fora de controle. Os presos estavam à vontade. As várias fotos dos membros da Força Nacional de Segurança mostram que é ela praticamente uma tropa de brancos. Essa polarização pode ser acidental, mas pode ser indício de uma racialização do conflito social.
Já está claro que, onde ocorrem episódios de tensão, infiltram-se preconceitos oportunistas, um deles o racismo, que invadem as ocorrências e se alojam em protestos e conflitos originariamente de outra natureza. Na crescente ocorrência de linchamentos no Brasil, quase um por dia, é maior a proporção de negros em relação a brancos vitimados, embora a motivação do justiçamento popular não seja, em princípio, racial. Mas a violência da turba é maior em relação ao negro do que ao branco.
Já a ocorrência de São Paulo, a do Araçá, mostra que a sociedade brasileira está atravessada por tensões de ódio social no qual diferentes motivações podem se alojar. Um dos casos mais emblemáticos de vandalismo em cemitério ocorreu em 1998, no da Consolação, quando um belíssimo anjo de terracota e alumínio do artista plástico Fulvio Pennacchi foi decapitado e teve as mãos decepadas. A restauração da obra foi impossível. Não se trata apenas da destruição de uma obra de arte de um de nossos artistas mais respeitáveis, mas da forma como foi destruída. Os criminosos adotaram formas antigas de punição e castigo. Ainda no século 19, aqui no Brasil, os condenados à morte na forca eram depois decapitados e as cabeças levadas por capitães do mato, em caixotes cheios de sal, pelas vilas do interior para escarmento dos povos. O recado continua o mesmo: mostrar quem manda e, agora, que quem manda não é quem está no poder.
O ressentimento social começou a se tornar evidente já no regime militar e cresceu muito no imediato período pós-ditatorial. O claro uso eleitoral do ressentimento acumulado, na campanha de 2002, deu status político e legitimidade à concepção de que o Brasil é um país de opostos, dos que lesam e dos que são lesados. A retórica de um partido dos pobres contra a opressão e os privilégios de um partido dos ricos, que dominam e exploram há 500 anos, alcançou todos os temas possíveis: raça, cor, classe social, religião. Mesmo criminosos incorporaram essa linguagem e essa mentalidade como referência da legitimidade de seus crimes, vingança dos pobres contra os ricos, dos excluídos contra os incluídos, dos que não podem contra os que podem, dos que não têm liberdade contra os que a têm.
José de Souza Martins, sociólogo, é , professor emérito da Faculdade de , Filosofia da USP. autor de História, Arte no Cemitério da Consolação (2008)
Fonte: Aliás / O Estado de S. Paulo
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