Como expõe a alta na inflação, o uso de artifícios contábeis não disfarça a dificuldade do governo para cumprir os objetivos centrais de uma política econômica estável
Ana Luiza Daltro
Em meio aos debates da edição de 2011 do Fórum Econômico Mundial, em Davos, na Suíça, uma jornalista perguntou a Larry Summers, ex-secretário do Tesouro dos Estados Unidos na gestão Bill Clinton e ex-reitor de Harvard, se ele achava que as conversas entre a Casa Branca e os empresários americanos estavam fluindo melhor do que no começo da crise financeira. Summers disparou: "O presidente (Barack Obama) está plenamente consciente de que a confiança é a forma mais barata de estímulo". Não é possível esperar que os empresários invistam de forma vigorosa quando eles não confiam na capacidade do governo de prover um ambiente econômico previsível e favorável aos negócios. A credibilidade decorre, antes de mais nada, do cumprimento de metas básicas, entre elas as de inflação e as estabelecidas para as contas públicas.
Quando um governo se desvia desses objetivos, ele colabora para ampliar o nível de incerteza sobre o comportamento futuro da economia — e inibe os investimentos. Consciente da necessidade de não ser derrotado pela chamada "guerra das expectativas", o ministro da Fazenda, Guido Mantega, e outros integrantes graduados da equipe de Dilma Rousseff têm prometido dar novo ânimo ao combate à inflação e também ao rigor na execução do Orçamento. As palavras, entretanto, nem sempre encontram arrimo nas ações. Os resultados recentes de alguns dos principais indicadores econômicos foram mascarados por truques numéricos e contábeis que, observados com atenção, apenas serviram para lançar mais incertezas.
O resultado da inflação de 2013, divulgado na sexta-feira, é um exemplo. A alta do índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) foi de 5,91%. O centro da meta de inflação, que deveria ser o alvo do Banco Central, é de 4,5%. O governo trabalhava com a meta informal de obter um índice inferior aos 5,84% de 2012, mas nem esse objetivo mais frouxo foi alcançado. Além disso, o número oficial seria muito maior se o governo não controlasse a ferro e fogo os chamados preços administrados. Essa categoria, que inclui a gasolina e as tarifas de energia elétrica e transportes públicos, subiu apenas 0,95% no ano passado. Já a cesta básica, por exemplo, viu o seu preço crescer a mais de 10% em nove capitais brasileiras. Em outro ponto preocupante, houve uma aceleração dos reajustes nos últimos meses do ano. A inflação em dezembro, de 0,92%, foi a maior num único mês desde 2003. Como consequência, consultores já esperam que o BC aumente a taxa básica de juros para além do previsto originalmente — e isso em um momento de crescimento ainda tímido da economia.
O ponto considerado como o mais frágil da política econômica está nas contas públicas. Mantega antecipou, em 3 de janeiro, o anúncio dos números preliminares do superavit fiscal primário para 2013. A decisão de fazer o comunicado, nas palavras do ministro, foi tomada para acalmar os "nervosinhos" do mercado financeiro. Mas a divulgação de pouco serviu para distender os nervos. O ministro festejou o fato de o resultado obtido ter ficado em 75 bilhões de reais, acima dos 73 bilhões prometidos. Problema número 1: a meta original a ser cumprida, prevista em lei. era de 108 bilhões de reais. Os tais 73 bilhões, como explica o economista Felipe Salto, resultam dos descontos com obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Problema número 2: o resultado de 75 bilhões de reais só foi possível graças a receitas extraordinárias obtidas de última hora, como as do programa de renegociação de dívidas em atraso e as da concessão do campo de Libra. O governo também lançou para 2014 gastos programados para o ano passado. Sem esses expedientes, o resultado final seria próximo de zero.
Segundo cálculos do economista Alexandre Schwartsman, até novembro do ano passado as receitas oriundas de concessões de infraestrutura, de dividendos de estatais e de renegociações de dívidas tributárias alcançaram 59 bilhões de reais. O superávit federal oficial, que chegou a 1,9% do PIB nos doze meses terminados no citado mês, mal encostaria em 0,3% do PIB. Problema número 3: o ministro não se comprometeu com nenhuma meta para 2014, contribuindo apenas para dar mais razão aos "nervosinhos". "Não existe um planejamento, um ataque conjunto aos problemas que temos"", afirma o economista Sergio Valle, da MB Associados. "Essa ilusão permanente em que o governo vive, e que o mercado cada vez mais acredita que não vai mudar, certamente trará rescaldos perigosos para os próximos anos."
Até mesmo nas transações comerciais externas o Brasil passou a obter resultados frustrantes — prontamente mascarados por novos truques. O saldo na balança entre as exportações e as importações ficou positivo em 2,6 bilhões de dólares no ano passado, o pior resultado desde 2000, quando houve um déficit de 731 milhões de dólares. Mas o resultado teria sido ainda mais fraco não fosse o expediente, cada vez mais empregado, de contabilizar como exportação o deslocamento de plataformas de petróleo que na verdade nunca saíram do Brasil. Os fornecedores desses equipamentos os vendem no papel a subsidiárias de petroleiras no exterior, que os "trazem" para as suas operações aqui como se os estivessem alugando. A manobra, que faz com que as empresas consigam pagar menos impostos, está de acordo com as regras do comércio internacional e com a legislação brasileira. O valor total de operações comerciais do tipo atingiu 6 bilhões de dólares entre 2004 e 2012, enquanto que, só no ano passado, 7,7 bilhões de dólares em plataformas de petróleo que nunca deixaram o Brasil "viraram" exportação. Não fosse isso, o governo teria anunciado um déficit nas transações comerciais.
"O Brasil passou 2013 escorregando nas cascas de banana que plantou para si e fingindo que o problema estava em outro lugar", diz a economista Monica Baumgarten de Bolle, sócia-diretora da Galanto Consultoria. "O gorno fingiu que o problema era o quadro internacional, e adotou medidas mal concebidas e desorganizadoras. Enquanto isso, as contas públicas se esfacelaram, o déficit externo aumentou e a inflação se estabeleceu em um terreno pantanoso, cheio de artifícios e ingerência nos preços administrados." Resta torcer por um 2014 com uma dose menor de autoengano por parte do governo — e também com menos truques, que não enganam mais ninguém na plateia e servem apenas para minar a confiança na economia.
Fonte: Revista Veja
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