domingo, 26 de janeiro de 2014

Miriam Leitão: Povo e República

A República nasceu sem povo, mas 30 anos atrás foi invadida pelo povo na mais memorável onda de manifestações de rua, a das Diretas. Hoje, vive-se um momento diferente, com uma enorme insatisfação em relação ao sistema de representação. Ao reunir na mesma conversa um historiador e uma atriz, o resultado foi instigante para pensar o Brasil.

O Comício da Praça da Sé, dia 25 de janeiro de 1984, foi o ponto em que ficou claro que o regime militar não controlaria mais as ruas. No palanque, entre os políticos, brilharam atores, atrizes, cantores. Fafá de Belém cantava a capella o Hino Nacional. A atriz Christiane Torloni foi presença frequente. O historiador e cientista político José Murilo de Carvalho esteve no Comício da Candelária, de um milhão de pessoas. Ele sempre estudou os encontros e desencontros do povo e sua República. Por isso, chamei Christiane e José Murilo para um balanço do movimento, 30 anos depois, no programa da Globonews.

O professor José Murilo de Carvalho nos aponta na sua obra o começo descarnado da República e a lenta construção da cidadania. Os militares a instauraram diante da população apática. Perguntei se a campanha das Diretas fora o momento em que o povo reencontrou a República.

— Eu creio que o povo começou a entrar na República em 1945, porque, antes, apenas 5% votavam. Nem pelo voto havia povo. A partir daí veio uma curva ascendente muito forte, vieram as manifestações pela Petrobras. Houve uma invasão da República pelo povo, o sistema entrou em pane e veio o corte de 64 — disse José Murilo.

A atriz Christiane Torloni lembra as Diretas como uma retomada.

— Era a terra pulsando no ritmo do hino nacional; não era o hino roubado, institucionalizado, proibido. Foi o momento em que o povo cantou para dizer “é meu o hino". E ele fazia sentido.

— Símbolos são importantes. Os militares tinham sequestrado o hino, a bandeira. O hino tinha a forma certa de cantar, havia regras para o uso da bandeira. E Fafá cantava o hino fora das regras — completa José Murilo.

A cidadania foi reconquistada naqueles dias. O comício da Sé foi a explosão em número, mas o movimento começou com um encontro pequeno em Abreu e Lima, Pernambuco, convocado pelo PMDB. Depois, o senador Teotônio Vilela propôs uma campanha de rua. O outro comício foi em Goiânia, já a favor da emenda Dante de Oliveira. Depois, veio Curitiba. Aí aconteceu a Sé e seus 300 mil. Os últimos, na Candelária e Anhangabaú, dias 10 e 16 de abril, reuniram um milhão de pessoas. Um ano de movimento e três meses intensos, ao todo, 40 comícios e 4,5 milhões de pessoas.

— Nós íamos andando no meio das pessoas até o palanque, não tinha isso de irem os vips separados. Porque era uma volta para casa. Para a praça, para a rua, que também haviam sido sequestradas. Era o resgate da cidadania, sem ufanismo — diz Christiane.

José Murilo fez um paralelo inquietante. Lembrou dos políticos que estavam na frente do movimento:

— Ulisses, Covas, Montoro, Arraes, Brizola. Os novos eram Fernando Henrique e Lula. Havia confiança na política. Os políticos estavam ali liderando, e as pessoas confiavam neles e na política como instrumento. Nas manifestações de junho, foi o oposto. Aconteceu de repente. Ninguém esperava e houve rejeição aos políticos e à política. Significa que é necessário dar um passo à frente, reformar o sistema representativo que não está dando conta das necessidades. A juventude está perdida em relação ao sistema atual — diz José Murilo.

Christiane fez outra comparação das Diretas com o movimento de junho:

— Não acho que junho aconteceu de repente. Acho que estava atrasado. É muito estranho que a Nação tenha ficado calada durante tanto tempo. Quando começou, era de novo a volta para a casa. Mas depois houve os black blocs. Que gente é essa? São pessoas que gostam do Brasil? Não. Se gostassem, mostravam sua cara. Veja o palanque das Diretas. Tem alguém de máscara? Era o contrário, a gente queria mostrar a cara para dizer: eu sou você, somos um só, é o espírito da Nação. É como o amor, a gente olha a cara do outro.

É cheia de encontros e desencontros a relação da república brasileira e seu povo. Há 30 anos, houve uma bela página. Os eventos recentes estamos ainda tentando entender.

Fonte: O Globo

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