• Da ruptura à velha ordem
- Folha de S. Paulo - Ilustríssima
- Resumo. Com uma história que vai da opção pela esquerda latino-americana em detrimento do modelo social-democrata europeu à reinvenção do capitalismo de Estado brasileiro, o PT chega a uma encruzilhada. Na crise, o discurso ideológico da agremiação se volta para o passado, invocando fantasmas do udenismo e de 1964.
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Mais de dois anos antes da primeira eleição presidencial de FHC, que assinalou a segunda derrota de Lula na tentativa de chegar ao Planalto, a revista "Teoria e Debate", publicada pelo PT, estampou na sua edição 18 (mai./jun./jul.92), um artigo sobre Cuba, do então deputado estadual Marcos Rolim.
Nele, o parlamentar petista fazia uma pergunta crucial: "O que, afinal, significa uma 'posição crítica' frente ao regime de Fidel?". E respondia com um diagnóstico, e outra indagação, carregada de ironia: "Quer dizer [...] que, em que pese não estarmos de acordo com isto ou aquilo, somos a favor daquele regime e queremos colaborar com ele para que corrija certos 'defeitos'. Por este caminho, poder-se-ia começar pelo 'detalhe' da liberdade, quem sabe?".
O "detalhe" da liberdade assombrou o PT, desde seu nascimento. Fundado quase junto com o levante do Solidariedade, em 1980, o PT apoiou os grevistas poloneses mas também enviou dirigentes para "escolas de quadros" no Leste Europeu. Alguns deles, inclusive o metalúrgico Djalma Bom, estavam na sede do Partido Comunista da Alemanha Oriental bem na hora da queda do Muro de Berlim, em novembro de 1989.
Na edição 14 da mesma "Teoria e Debate" (abr./mai./jun.91), Eugênio Bucci escrevia que "o PT só não se tornou o último partido comunista do mundo porque isso não passou pela sua base, instintiva, mobilizada e antiburocrática".
Um dos criadores e primeiro editor da revista, Bucci tinha razão sobre o comunismo, mas exprimia apenas uma utopia possível nas linhas seguintes do texto, que definiam o PT como "um partido social-democrata".
De fato, ao contrário, no intervalo entre a queda do Muro de Berlim e a segunda derrota presidencial de Lula, o PT escolheu não ser um partido social-democrata. A opção negativa nunca foi explícita em termos teóricos ou programáticos, mas provocou um dramático estreitamento intelectual.
Rolim desfiliou-se do partido em 2009 e, no ano seguinte, colaborou na formulação de programas de campanha de Marina Silva. Bucci afastou-se do PT depois de 2007, desferindo ácidas críticas ao partido, que se organizam em torno do "detalhe" da liberdade.
Suas trajetórias ilustram uma debandada silenciosa que envolveu incontáveis quadros militantes ligados às origens do petismo. De certo modo, paradoxalmente, o PT converteu-se no "último partido comunista do mundo" enquanto abraçava-se às elites políticas tradicionais e aos maiores conglomerados empresariais do país.
Opção
A social-democracia era muito mais do que uma possibilidade teórica para o PT.
Pierre Mauroy, ex-primeiro-ministro de François Miterrand, presidiu a Internacional Socialista (IS) entre 1992 e 1999. Pouco antes, os conflitos faccionais no PS francês tinham-no aproximado de Lionel Jospin, que viria a ocupar a chefia de governo em 1997. Jospin era oriundo da mesma corrente trotskista que o franco-argentino Luis Favre, futuro marido de Marta Suplicy e, na época, um quadro petista de algum destaque.
Os dois ex-trotskistas acalentavam a ideia de levar o PT para a IS, cuja representação no Brasil era ocupada pelo PDT de Leonel Brizola. A articulação avançou até um ensaio de oferecimento da vice-presidência da IS a Lula, mas não prosperou: à social-democracia "europeia", o PT preferiu a esquerda latino-americana.
O Foro de São Paulo nasceu em 1990, de um acordo entre Lula e Fidel Castro, como uma rede ampla de partidos de esquerda da América Latina, destinada a oferecer suporte político ao regime cubano.
Fidel operava no cenário desesperador do Período Especial, marcado pela desaparição da URSS, levando a ilha ao racionamento e à fome entre 1989 e 1994. Lula enxergava na rede uma plataforma para a difusão internacional de sua própria influência.
Defendida por José Dirceu, a opção pela aliança com Cuba não era compatível com a adesão à IS, ainda mais naqueles anos em que os partidos social-democratas europeus insistiam em condenar a crescente repressão doméstica promovida pela ditadura castrista.
A tradição nacionalista, estatista e populista da esquerda latino-americana não combinava com as origens do PT. Os sindicalistas do ABC contestavam o imposto sindical, base da CLT varguista, e ergueram a bandeira da liberdade sindical para criar a CUT.
A crítica de esquerda ao capitalismo de Estado brasileiro, formulada durante o "milagre econômico" de Médici e Geisel, revelara que as empresas estatais não funcionavam como ferramentas de desenvolvimento social. Contudo, paralelamente à aliança com Cuba, os dirigentes petistas começaram a recuperar os dogmas da esquerda latino-americana.
Como falar de "socialismo", logo depois da queda do Muro de Berlim? Que resposta oferecer às proclamações triunfantes sobre a globalização?
Fernando Collor e seu sucessor, Itamar Franco, esboçavam um programa de privatizações. O inesperado triunfo de FHC em 1994, obtido por meio do Plano Real numa eleição que parecia destinada a transferir a presidência para Lula, empilhava todos os enigmas ideológicos diante do partido.
A resposta petista foi um curioso recuo intelectual rumo a trincheiras cavadas por outros. Dela, surgiu a polaridade PT-PSDB que fixou a geometria da política brasileiro nas últimas duas décadas.
Chaves
Durante os estertores do governo Collor, o deputado Luiz Gushiken, líder sindical bancário que pertencia ao círculo mais próximo de Lula, publicou um artigo premonitório na edição 19 da "Teoria e Debate" (ago./set./out.92)
O programa de privatização, escreveu, "está destruindo o patrimônio público e fará surgir um Estado quase incapaz de influenciar o desenvolvimento econômico".
Como alternativa, num futuro governo petista, ele sugeria a seleção de setores "estratégicos" da economia nos quais concentrar uma "intervenção intensa e localizada" do Estado, capaz de "induzir o crescimento" dos demais setores.
Os fundos de pensão das estatais não eram mencionados no texto. Mas Gushiken já identificara nesses vastos depósitos de poupança uma fonte de capitais para a "intervenção intensa e localizada" que preconizava.
Tais recursos, privados, são geridos paritariamente pelas empresas estatais e pelos funcionários pensionistas. Os sindicatos dirigidos pelo PT deveriam apoderar-se da representação dos trabalhadores na governança corporativa dos fundos. Quando o partido chegasse ao Planalto, obteria o controle absoluto sobre os recursos, podendo direcioná-los para os investimentos estratégicos de um renovado capitalismo de Estado.
"Para o PT, que pretende governar o Brasil no ano que vem, está afastada a hipótese de participar dessa administração federal", escreveu Dirceu, em fevereiro de 1993, na "Teoria e Debate".
No momento do impeachment de Collor, a direção petista decidiu apostar todas as fichas num triunfo eleitoral que seria facilitado pela crise inflacionária em curso. O Plano Real e a dura derrota de 1994 encerraram uma etapa. Sob o comando de Dirceu, o partido se reinventaria para chegar ao poder.
A segunda fundação do PT realizou-se como uma dupla negação. No plano programático, pela rejeição da crítica original à herança varguista da esquerda brasileira.
No plano organizacional, pela edificação de uma máquina político-partidária profissional, em substituição ao "partido da militância".
O "último partido comunista do mundo" não almejava o socialismo, mas a modernização do capitalismo de Estado local. Seu inimigo seria o PSDB, que encarnava o projeto de ruptura com essa tradição e passaria a ser identificado pelo rótulo do "neoliberalismo".
Sépia
O programa econômico, os métodos de administração, as coalizões políticas e as alianças empresariais implementados, não sem oscilações, nos três sucessivos governos lulopetistas foram gestados naquela segunda fundação do PT. A crise atual marca o esgotamento do modelo neovarguista, que implode em câmera lenta.
De partido da ruptura, o PT transformou-se em partido da ordem e, em seguida, no partido da velha ordem.
No espelho da linguagem, a crise aparece como uma declaração histórica anacrônica. Desde que subiu a rampa do Planalto, Lula trocou a referência de classe (os "trabalhadores") pela vaca sagrada do populismo (os "pobres").
A incorporação das centrais sindicais às estruturas da CLT e a cooptação estatal dos "movimentos sociais" foram acompanhadas pela recuperação das figuras de Vargas e Jango Goulart. Na nova narrativa do lulopetismo, Lula emerge como a realização tardia, mas gloriosa, de promessas redentoras interrompidas pela ação da "elite".
O empreendimento historiográfico equivale à montagem de uma galeria de fotografias em sépia.
Na convocatória para o 5º Congresso Nacional do PT, lançada no início de 2013, a defesa dos governos Lula articulava-se ao redor do argumento de que "as denúncias de corrupção sempre foram usadas pelos conservadores para desestabilizar governos populares, como os de Vargas e Goulart".
Diante das repercussões do escândalo na Petrobras, os dirigentes petistas alardeiam um suposto "udenismo" das oposições, enquanto os intelectuais associados ao partido alertam sobre o fantasma da "repetição de 1964". O partido do futuro não para de falar sobre o passado.
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