- O Globo
O Brasil avançou muito nos últimos 30 anos. São progressos que não pertencem a um partido político, mas ao conjunto da sociedade. Sobre nossas divergências naturais, construímos consensos. Primeiro, escolhemos a democracia e a volta dos militares aos quartéis. Definitivamente. Segundo, lutamos e conquistamos a estabilidade monetária e, por fim, trabalhamos pela inclusão social.
São etapas civilizatórias e estão no nosso contrato social. Neste ano difícil, os fantasmas decidiram nos visitar todos ao mesmo tempo. A mais inesperada das visitas do passado foi a aula do general Antonio Hamilton Martins Mourão, comandante do Exército na região Sul. E ele ainda tem “Mourão” no nome, vejam vocês. O general falou e escreveu em slides que apresentou aos jovens do CPOR coisas como: “É nosso dever esclarecer a opinião pública, notadamente a juventude” sobre a situação do país. Falou em “despertar para a luta patriótica” e avaliou que a queda da presidente não trará mudança significativa no “status quo”, mas a “vantagem da mudança seria o descarte da incompetência, má gestão e corrupção”. A “Zero Hora” e a “Folha de S. Paulo” publicaram essa desconcertante notícia.
Claro que o país precisa superar a incompetência, má gestão e corrupção, e isso será feito democraticamente, pelas instituições que estão trabalhando nisso, como a Justiça, o Ministério Público e até a Polícia Federal têm feito na Operação Lava-Jato. Um general da ativa fazer uma palestra política para seus comandados contraria frontalmente os limites que o país estabeleceu para manifestações públicas dos militares. Esses limites foram estabelecidos porque as Forças Armadas passaram 20 anos no poder exercendo o que eles entendem ser “a luta patriótica”. E isso nos custou caro demais.
O outro ponto de avanço foi a estabilidade da moeda conquistada há 21 anos. Não está no horizonte o risco de voltar ao descontrole inflacionário, mas uma taxa de 10% é alta o suficiente para que se acendam todas as luzes amarelas do painel. Ela foi atingida por erros administrativos do governo Dilma, que aceitou conviver com taxas cada vez mais altas, manipulou preços e depois teve que corrigi-los. Apesar de ninguém pensar na volta da hiperinflação, da mesma forma que seria exagero acreditar que os militares estejam conspirando porque um general fez uma fala inconveniente, estes são riscos que um país como o Brasil não pode correr.
O terceiro ponto de desconforto com a conjuntura é a ameaça feita pelo deputado Ricardo Barros, da base do governo, de cortar 35% dos recursos do Bolsa Família. É bom lembrar que esse programa veio da consolidação de programas anteriores e nasceu da necessidade de reduzir a pobreza e a pobreza extrema através da construção de uma rede de proteção social. Ele acumulou nos últimos anos inúmeras distorções. Talvez a maior delas tenha sido o uso eleitoral do programa que ficou mais escancarado na eleição de 2014.
Com todos os defeitos, é uma rede eficiente que retira pessoas da extrema pobreza e da pobreza. Para que o movimento de mobilidade ascendente se consolide, é preciso investimento em educação e incentivo à inserção no mercado de trabalho. O Congresso promover o corte de um terço no programa, como parte da briga política, em momento de recessão e aumento do desemprego, é a forma de expor a riscos a parte mais vulnerável da sociedade.
O Bolsa Família custa 0,5% do PIB e cria uma rede de proteção que alcança 14 milhões de famílias. Em vez de querer acabar com ele, é preciso combater seus defeitos, e não aceitar a versão petista de que é propriedade do partido. Ele é herdeiro de outros programas de transferência de renda que nasceram da ideia de que era preciso focar nos mais pobres e formatar políticas públicas que levassem recursos públicos a quem mais precisa. Reduzir os extremos da pobreza foi um dos consensos que a sociedade brasileira formou.
Neste ano de visitas dos velhos fantasmas, temos um militar desrespeitando os limites da função, a inflação chegando a dois dígitos e a proposta de redução de uma das políticas de proteção social que tem mais foco. No Brasil, o processo civilizatório deu três grandes passos: democracia, estabilidade e inclusão. Recuar é inaceitável.
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