• Estudo mostra que correlação entre receita e PIB ficou negativa
- Valor Econômico
Nos anos de forte expansão dos gastos públicos, os governos recorreram muito mais ao aumento da carga tributária do que ao controle das despesas para assegurar um certo equilíbrio das finanças públicas. Um aspecto ajudou a sustentar esse processo até pouco tempo atrás: a forte correlação existente no Brasil entre arrecadação de impostos e atividade econômica. A má notícia é que, muito provavelmente, essa elasticidade não exista mais, o que obriga o país a repensar o Estado brasileiro, do contrário, daqui em diante o ajuste das contas públicas (ou o financiamento das despesas) voltará a ser feito pela expansão insustentável da dívida pública e/ou pela inflação.
O aumento da despesa pública tomou corpo no Brasil desde a promulgação da atual Constituição, em 1988. Na opinião do economista Luiz Guilherme Schymura, diretor do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), a nova Carta foi o marco inicial de uma era de "aprofundamento da democracia brasileira, durante a qual o poder público, sob o comando da vontade soberana das urnas, perseguiu a construção de um Estado de bem-estar social nos trópicos".
O cidadão ganhou, com a Constituição, uma série de direitos que antes não tinha, como o acesso universal a serviços de saúde e educação. A Carta Magna não disse como esses direitos seriam financiados. O que os governos fizeram desde então definiram o modelo econômico brasileiro - de 1988 a 1994, quando foi lançado o Plano Real, a economia viveu sob o signo do caos, tendo sofrido uma traumática hiperinflação, que nada mais é que um mecanismo perverso de ajuste entre receita e despesa.
Ao lado da demanda por um estado do bem-estar social, houve, obviamente, um assalto paulatino ao Estado, promovido por grupos de interesse e facilitado, observa Schymura, pela juventude e a relativa "imaturidade" das instituições democráticas nacionais. "Junto com a correção de injustiças históricas e da extensão de direitos sociais legítimos, campearam também a distribuição de privilégios e as oportunidades de 'rent-seeking' [expressão em inglês que denomina os lobbies que obtêm vantagens (como subsídios e tarifas de importação) que não beneficiam a maioria da população)]", critica o diretor do Ibre. "Mais recentemente, o aumento dos subsídios de política industrial e daqueles voltados a relançar a economia após a desaceleração de 2011 foi outra contribuição para o crescimento do gasto público."
Com o lançamento do Plano Real, iniciou-se o enfrentamento da questão fiscal, mas de forma ainda insuficiente - nas crises externas de 1994 (México), 1997 (Ásia) e 1998 (Rússia), o Brasil exibiu grande vulnerabilidade. Apenas nas crises de 1999 e 2003, o país de fato conseguiu enfrentar o problema fiscal, mas o fez primordialmente por meio do aumento de impostos e não do corte de despesas.
Nos cinco anos da gestão da presidente Dilma Rousseff até aqui, o superávit primário caiu de algo em torno de 3% do PIB para um déficit primário de 1% do PIB. Em 2015, tempo de uma nova crise, o ajuste tradicional - aumento de impostos e algum corte de despesas - não funcionou. Uma das razões para a dificuldade pode estar na queda da correlação entre receitas oficiais e atividade econômica.
O pesquisador Livio Ribeiro, do Ibre, fez um exercício para calcular essa correlação. Ele constatou que a elasticidade entre arrecadação real (excluídas as receitas previdenciárias) e crescimento da demanda interna privada (tomada como variável relevante de atividade) foi de 1,13 entre o primeiro trimestre de 2000 e o segundo trimestre de 2015. Na média, portanto, a arrecadação do governo cresceu, nesse período, em linha com a expansão da economia.
O exercício conduzido por Ribeiro revela, porém, que a tendência mudou desde 2011. Para entender o que ocorreu, o pesquisador dividiu o exercício em dois períodos: antes e pós crise mundial de 2008. Os resultados ficaram assim: a elasticidade entre arrecadação e demanda interna, entre 2000 e 2008, foi de 1,59; no período 2009-2015, ela caiu para 0,98.
O que pode explicar essa mudança? Uma possibilidade é a extinção da CPMF no fim de 2007. Outra são as desonerações tributárias promovidas pela presidente Dilma no primeiro mandato - muitas foram revertidas, mas não totalmente. Uma terceira explicação estaria no processo de formalização da economia, observado principalmente nos anos do último boom (2004-2010) e que já deixou para trás o seu momento de expansão mais rápida. Um outro fator importante é o efeito negativo que a repetição de programas de anistia fiscal, como o Refis, exerce sobre a disposição dos contribuintes para pagar tributos.
"O exercício indica, portanto, uma probabilidade significativa de que tenha havido, de fato, uma quebra estrutural na correlação entre arrecadação tributária e atividade econômica, ocorrida em algum momento entre a eclosão da crise global e 2011", diz Schymura. "Na verdade, em boa parte dos anos 2000, o Brasil passou por um 'momento mágico' em termos de contas públicas, em que parecia haver espaço para o prosseguimento da elevação do gasto sem risco de comprometer a solidez fiscal. Para muitos analistas, incluindo pesquisadores do próprio Ibre, o problema de solvência pública parecia superado, e a questão fiscal adquirira um caráter muito mais de gestão de demanda."
Essa constatação traz enormes desafios. Um deles é que não se deve mais apostar na recuperação da arrecadação de impostos a partir de uma possível retomada da economia, o que impõe limites claros à solução do grave problema fiscal brasileiro. "É imprescindível repensar o Estado brasileiro, portanto, procurando compatibilizar o aprofundamento da democracia no país e a extensão de direitos com a solidez fiscal de longo prazo", recomenda o diretor do Ibre.
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