- O Globo
A ascensão de Donald Trump assinala uma inflexão na ordem mundial. Na sequência da anexação russa da Crimeia e do Brexit, a decisão britânica de deixar a União Europeia, o crescimento dos partidos ultranacionalistas na Europa e a brusca mudança de rumo dos EUA aceleram as tendências à “desglobalização”. Paralelamente, um “efeito Trump” dissolve a coerência interna de dois discursos concorrentes: o liberal e o esquerdista. O terremoto que abala a gramática das ideologias é tão destruidor, e talvez mais duradouro, que o furacão geopolítico em curso.
“Não mais renderemos este país, e seu povo, à falsa canção do globalismo”, clamou Trump há quase um ano, no seu primeiro discurso de campanha consagrado à política externa. Um círculo de ultranacionalistas dá as cartas no governo Trump. O inimigo definido por essa corrente é uma certa “elite globalista”, que seria responsável por um suposto declínio americano. O combate a ela implica a desmontagem da ordem econômica aberta criada pelos EUA no pós-guerra e reforçada no pós-Guerra Fria. O antiliberalismo é, portanto, o traço distintivo do “trumpismo”. Liberais e esquerdistas precisam acertar as contas com esse fenômeno.
Há resistências a Trump, entre liberais (isto é, conservadores) americanos. Contudo, a maioria do establishment republicano e mesmo vozes tradicionais do movimento liberal-conservador adaptam-se à realidade do “trumpismo”. No Brasil, seitas liberais bastante insignificantes, mas muito ativas na internet, transitam rumo ao campo gravitacional “trumpiano”. Uns e outros camuflam sua adesão ao antiliberalismo por meio de ataques à “elite globalista” (o Partido Democrata, os veículos de imprensa, as universidades, os partidos de centro e centro-esquerda na Europa), descrita pateticamente como um polvo “esquerdizante”.
Os liberais-conservadores que aderem ao governo Trump jogam seus princípios numa lixeira instalada à frente da Casa Branca. Convertem-se em defensores do protecionismo econômico e das políticas identitárias nativistas. Curvam-se ao conceito nacionalista do “America First”, que atribui ao governo a prerrogativa de moldar a economia e, inclusive, de premiar ou punir empresas específicas. No mesmo passo, tornam-se cúmplices da parceria com Vladimir Putin e com os partidos da direita antiliberal na Europa. Em busca de um pretexto, esses adesistas agarram-se às promessas trumpianas de desregulamentação, redução de impostos e corte de gastos sociais para simular coerência ideológica. Relida por eles, a doutrina liberal não é uma ferramenta de incremento da produtividade ou de preservação das liberdades, mas um ariete contra o Estado de Bem-Estar e suas redes de proteção social.
Trump adquiriu o hábito de elogiar Bernie Sanders, o candidato esquerdista que desafiou Hillary Clinton nas primárias democratas. Sanders, em campanha: “A economia crescentemente globalizada, estabelecida e mantida pela elite econômica mundial, está debilitando os povos em todos os lugares. Precisamos rejeitar absolutamente nossas políticas de ‘livre comércio’ e substituí-las pelo comércio justo.” Há uma convergência real, de fundo, entre Sanders e Trump, expressa nas teclas da condenação à globalização, da acusação à “elite globalista” e da alternativa protecionista.
Desde a Queda do Muro de Berlim, um setor da esquerda descreve a globalização como um estágio superior do imperialismo e flerta com o nacionalismo. Sanders, nos EUA, articula discurso similar ao de Jeremy Corbyn, o líder esquerdista do Partido Trabalhista britânico. Na Europa continental, a “elite globalista” e a União Europeia apareceram como alvos do bombardeio do Syriza grego (antes da chegada ao poder) e do Podemos espanhol (que, agora, atenua seu euroceticismo). O internacionalismo de esquerda confinou-se aos partidos social-democratas tradicionais, que experimentam crises crônicas.
A deriva da esquerda na direção do nacionalismo não é algo inédito. Mussolini, sempre é bom lembrar, chegou ao porto do fascismo partindo da esquerda socialista. Hoje, porém, o antiglobalismo de esquerda não está contaminado pelo nativismo e pela xenofobia. Nessa diferença fundamental encontram-se as raízes do fracasso político e eleitoral dos esquerdistas. Sanders, Corbyn e companhia reúnem multidões minoritárias, pois seu nacionalismo é manco, incompleto. “America First” não fala só sobre economia, mas também sobre identidade, apelando com maior eficiência às angústias e medos dos órfãos da globalização. Nas horas decisivas, isto é, a eleição geral ou o plebiscito, os eleitores de Sanders são atraídos por Trump e os de Corbyn, pelo Brexit.
Os liberais-conservadores rendidos a Trump descartam suas crenças e sua herança política, desmoralizando-se, em nome do exercício momentâneo do poder. Já os esquerdistas encantados pelo nacionalismo poluem seus princípios em troca de nada — ou, melhor, do aplauso de estéreis movimentos militantes. No fim, por vias distintas, uns e outros contribuem para o avanço do ultranacionalismo tão claramente expresso no “trumpismo”.
Mario Vargas Llosa constatou que o nacionalismo populista, nas suas versões de direita e de esquerda, emerge como principal desafio à democracia e à economia de mercado. Num editorial sobre a próxima eleição presidencial francesa, a revista “The Economist” registra que, globalmente, “a antiga cisão entre esquerda e direita torna-se menos importante que uma nova, entre abertura e fechamento”. De fato, na França, a disputa entre Emmanuel Macron, o candidato independente de centroesquerda, e a ultradireitista Marine Le Pen, que conta com a simpatia de Putin e Trump, condensa o conflito entre internacionalismo e nacionalismo.
“O mundo deles entra em colapso; o nosso está sendo construído”. A proclamação triunfal não é de Lenin, mas de Florian Philippot, o estrategista da campanha de Le Pen.
*Demétrio Magnoli é sociólogo
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