- O Globo
Os fins justificam os meios, segundo Rodrigo Janot. Em artigo publicado no UOL, o procurador-geral da República sustenta que seu acordo de delação premiada com Joesley e Wesley Batista, um salvoconduto judicial absoluto, serve aos “interesses do país”. Ele critica os críticos do acordo, que teriam “deturpado” o “foco do debate”. O “ponto secundário” seriam “os benefícios concedidos aos colaboradores”. A “questão central”, porém, seria “o estado de putrefação de nosso sistema de representação política”. Ficamos sabendo, então, que o PGR mobiliza meios jurídicos (o acordo de delação) para alcançar fins políticos (expor a ruína do sistema de representação). É uma confissão espontânea de desvio de finalidade e abuso de autoridade.
De fato, nosso sistema político é um material em estado de decomposição. Mas essa é uma interpretação do analista político — ou seja, de alguém que não detém as prerrogativas oficiais de investigar e demandar punições. Janot, o PGR, não tem o direito de agir segundo a bússola de uma análise política. E, contudo, a política condicionou cada passo da operação que culminou com a oferta das denúncias contra Michel Temer e Aécio Neves ao STF.
No artigo, Janot oferece, como justificativa para o acordo com os Batista, a sua “certeza de que o sistema de justiça criminal jamais chegaria a todos esses fatos pelos caminhos convencionais de investigação”. Se plausível, a alegação equivaleria a um atestado de incompetência da Polícia Federal (PF) e do Ministério Público (MP). Mas ela não passa de um álibi montado pelo PGR para ocultar suas motivações. A PF e o MP evidenciaram sua competência no caso da Odebrecht: a delação da quadrilha só veio após um ano de cínicas declarações de inocência, forçada pelo peso de provas colhidas através dos “caminhos convencionais de investigação”. Agora, depois de tudo, Janot pretende convencer-nos de que a punição dos corruptos depende, exclusivamente, da iniciativa de criminosos em busca de perdão judicial?
São muitas as indagações sobre os “caminhos de investigação” adotados pelo PGR no caso da JBS:
1) Será verdadeira a narrativa oficial de que os Batista só encetaram tratativas com o MP depois de obtida a gravação da conversa com Temer?;
2) Nessa narrativa, como se encaixa a notícia de que um procurador e um policial federal ministraram “aulas de delação premiada” ao advogado de Joesley antes da célebre gravação?;
3) Por que o áudio do cândido diálogo não foi submetido a perícia policial antes da oferta de denúncia ao STF?;
4) Quem vazou à imprensa uma síntese do áudio que estava de posse do PGR e não fora enviado para perícia à PF?;
5) Por que essa síntese estabelecia uma cumplicidade explícita, que é apenas intuída do próprio áudio, de Temer com o suposto pagamento de uma “taxa de silêncio” a Eduardo Cunha?
A definição dos “interesses do país” só é unívoca em regimes totalitários. Lula pensa que o interesse supremo é tê-lo como presidente. Sindicalistas acham que é perpetuar o imposto sindical. Muitos empresários acreditam que é conservar a torrente de financiamentos subsidiados do BNDES. Mas as autoridades são obrigadas a descrevê-lo de acordo com suas competências constitucionais. O PGR não tem o direito de atropelar as regras legais de uma investigação em nome de um “bem maior” de natureza política. Mas, aparentemente, foi o que fez Janot, associando-se com os Batista para “pegar” Temer e Aécio.
Línguas ferinas insinuam que, na visão do PGR, os “interesses do país” envolvem o bloqueio de uma reforma previdenciária capaz de suprimir privilégios de sua corporação. Uma tese mais benevolente reza que o PGR operou por meios heterodoxos para preservar a Lava-Jato, seu “bem maior”, desvendando uma conspiração armada no núcleo do poder por Temer e Aécio. Mesmo nessa segunda hipótese, o fim não justifica os meios.
A Lava-Jato ganhou a admiração da maioria dos cidadãos porque, ao contrário de tantas investigações anteriores, segue os meios legais para assegurar sua própria eficácia judicial. Os jovens procuradores empregam, amiúde, retórica missionária —mas são contidos por Sergio Moro. Moro excede-se, às vezes — mas é contido nas instâncias superiores. O ponto fora da curva é a operação Janot-JBS, deflagrada por um acordo espúrio que fere a credibilidade pública da Lava-Jato.
Roberto Barroso, ministro do STF, comprou a justificativa de Janot para arguir a irreversibilidade do acordo com os Batista — e, nesse passo, defender a homologação apressada de seu colega Edson Fachin. O argumento é que uma revisão desmoralizaria o instituto da delação premiada, afugentando potenciais delatores. Contudo, de fato, as concessões escandalosas a Joesley e Wesley só servem para inflacionar a expectativa de impunidade de bandidos de alto coturno, indicando-lhes que o crime compensa.
A lei de delação proíbe a oferta de imunidade judicial completa aos chefes de organização criminosa, como os Batista. O STF tem o dever de cumprila, ignorando a cisão janotiana entre meios e fins.
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Demétrio Magnoli é sociólogo
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