segunda-feira, 14 de agosto de 2017

O Gramsci que fala sobre nós | Silvio Pons

Democratica & Gramsci e o Brasil

Dossiê Gramsci, oitenta anos depois

Dois mil e dezessete é um “ano gramsciano”, por marcar o octogésimo aniversário da morte do pensador sardo, em 1937. Não é de hoje sua presença no debate político e na produção acadêmica brasileira. Uma presença que não é unívoca nem tem a mesma valoração por parte de todos os que se inspiram em maior ou menos medida nos textos daquele pensador. Nossa perspectiva — democrática e reformista — é uma das formas de acolher seu complexo legado. Sem a menor pretensão de qualquer monopólio ou ortodoxia, temos um objetivo “simples” e direto: pôr Gramsci a serviço da democracia brasileira.

Acolhemos a ideia de historicizar radicalmente os escritos do pensador, relacionando-os às diferentes circunstâncias em que foram produzidos — circunstâncias que inauguram nosso tempo, mas não são nem podem ser exatamente as mesmas aqui e agora. E tudo sem censuras, cortes ou embelezamentos. Certamente, este é um pressuposto da apropriação crítica, e não doutrinária, do autor, tornando-o apto a ajudar na compreensão de nossos problemas. Frases soltas ou conceitos descontextualizados têm assim validade muito restrita, ainda que possam ressaltar o brilho do escritor. Mas, como dissemos, nosso objetivo é de outra natureza.

Aqui reunimos três referências internacionais na área. Na abertura, Silvio Pons, atual presidente da Fundação Gramsci, em Roma, e sucessivamente Francesco Giasi e Giuseppe Vacca, diretores da mesma Fundação. Um tema recorrente nestas entrevistas é a monumental Edição Nacional dos Escritos, em curso de publicação. Mas não faltam alusões a questões substantivas da atualidade: a globalização e sua crise, para não falar dos imensos dilemas da própria esquerda.

A Fundação Astrojildo Pereira (FAP) e a Fundação Gramsci atuam conjuntamente no plano editorial, especialmente na coleção Brasil & Itália, acolhida e apresentada por Armênio Guedes, dirigente histórico do PCB associado entre nós às “ideias italianas”. De Giuseppe Vacca, já publicamos Por um novo reformismo; Gramsci no seu tempo (com Alberto Aggio e Luiz Sérgio Henriques); Vida e pensamento de Antonio Gramsci, 1926-1937; e Modernidades alternativas. O século XX de Antonio Gramsci. De Silvio Pons, publicamos A revolução global. História do comunismo internacional, 1917-1991, densa narrativa do impacto do comunismo no século passado.

Entrevista dada a Beatrice Rutiloni, Democratica, 14 jul. 2017

Deve-se dizer que Antonio Gramsci se tornou um ícone pop. Como a Marilyn de Andy Warhol ou o Che nas camisetas dos sonhadores de todo o mundo, Gramsci, com aquela face de “intelectual orgânico”, tornou-se o rosto mais conhecido da política com P maiúsculo, a que mistura pensamento, estudo, seriedade, paixão. E sobriedade. Gramsci como o novo ídolo de uma geração um tanto nerd, que de todo canto do mundo encontra naquele olhar moderníssimo a própria fuga do presente. O último dos utopistas, com os pequenos óculos redondos que passaram de John Lennon para Harry Potter, é hoje mais celebrado do que Lenin: há quatro anos, no Bronx, o artista suíço Thomas Hirschhorn criou a instalação The Gramsci Monument, um lugar de agregação que deu lugar a leituras, aulas, cursos para crianças, concertos e seminários. Da casa-museu de Ghilarza, na Sardenha, onde Gramsci viveu sua infância, até Nova York, o tesouro gramsciano parece se enriquecer de ano em ano. A demonstrar o fato de que a herança cultural, quando é viva, é como um clássico: não morre nunca — ao contrário, renasce na memória.

Oitenta anos depois da morte do político, definição que em sua máxima expressão é capaz de reunir todas as outras, a de filósofo, historiador, linguista, jornalista e escritor, resta muito de Gramsci: restam suas belíssimas cartas privadas, que expressam o homem, e restam os Cadernos, traduzidos em todo o mundo e abertos mil vezes na vida. Uma daquelas leituras que se fazem e refazem, porque sempre têm algo a dizer, um pouco como a Recherche de Proust. E permanece a impressão de Gramsci, o mesmo traço inquieto e ordenado de sua face está em sua página escrita, com aquela inesquecível grafia, muito pequena, precisa, de um homem que sabe que não se desperdiça e não se perde o tempo. Um dos maiores conhecedores da obra gramsciana é Silvio Pons, historiador da Europa Oriental, um dos maiores especialistas do comunismo internacional e presidente da Fundação Gramsci.

• Ocorre-nos perguntar neste 14 de julho, aniversário da Revolução Francesa, quanto vale hoje a liberdade.

É um valor global e é mais atual do que nunca. Vivemos uma época de grande desordem mundial em que foram recolocados em discussão os princípios fundamentais da democracia. O último exemplo de revolução em nome da liberdade foram as primaveras árabes que agora cancelamos à luz da catástrofe da Síria e de todos os eventos violentos que se seguiram à queda dos regimes. Poderíamos dizer que do final do século XX até o início do século muitas comunidades se movimentaram para reivindicar liberdades. Não houve só 1989 na Europa, houve muitas outras revoluções pacíficas entre os Bálcãs, o sul da África e até o Irã. Houve comunidades inteiras, destituídas de nome, que impuseram à agenda mundial uma exigência de liberdade que vai muito além da tradição eurocêntrica da Revolução Francesa.

• A egocêntrica Revolução Francesa.

Digo que os europeus monopolizaram alguns valores, entre os quais a liberdade. A Revolução Francesa foi a revolução política que gerou a modernidade política europeia, o evento genético do nacionalismo ocidental. Agora estamos numa época em que Ocidente e americanismo parecem pertencer ao passado e estão superados, mas uma certa ideia de liberdade e até de igualdade que se podem relacionar à nossa história moderna se globalizaram. Existem muitas revoluções francesas, na frente das quais coloco a primavera árabe.

• Mas ela fracassou.

As revoluções podem fracassar, mas seu fracasso também expressa significados importantes, sobretudo em relação à parte do mundo em que se originam. Até diria que justamente porque fracassaram devemos prestar ainda mais atenção. O fantasma das liberdades modernas ainda está entre nós.

• E o da igualdade?

Muito menos. Vivemos num mundo desigual: por uma parte, há o crescimento da riqueza global — mas sou ferozmente contrário a quem acusa a globalização de ser portadora de pobreza — que semeou riquezas no mundo de modo desigual. A China ou a Índia são as novas potências, o Ocidente não controla mais, não influencia mais. A redistribuição dos recursos deslocou o eixo da riqueza do Ocidente para o Oriente, trazendo como danosa consequência que, entre nós, o bem-estar está polarizado nas mãos de poucos e assistimos a um tendencial empobrecimento das classes médias, verdadeiro fulcro da democracia ocidental. Diante de tudo isto continua a me surpreender que a exigência de maior equidade ainda não tenha suscitado protestos sociais que era legítimo esperar.

• Será talvez ainda cedo?

A questão é que as sociedades hoje são muito corporativas e, portanto, custa-nos imaginar um bloco social e político que levante a questão de uma igualdade maior. Vejo um fenômeno que implica diminuição de igualdade mas não vejo os sentimentos de protesto e contestação, que permanecem limitados e marginais ou então se expressam sob a forma de populismos.

• E que tipo de forma social são os populismos?

Primitivos. Ilusórios. A ideia de que seja suficiente conquistar parcelas de soberania nacional para melhorar a vida das pessoas é uma miragem. No mundo de hoje, o primado dos Estados individuais está limitado por uma série de forças que não se deixam desafiar pelo poder de cada um deles. A única forma possível de resistência e de reforma, a única resposta positiva aos processos de globalização é supranacional.

• A única resposta é a Europa?

O tema de uma governance global continua a ser um grande tema, mas muito distante de nós. A Europa é uma resposta, por certo. O processo de integração europeia nasce como recusa às guerras entre Estados-nação que marcaram a história do século XX. A isto se soma a consciência de que só uma grande área supranacional em termos econômicos, democráticos e produtivos, pode sustentar a globalização.

• O problema são os líderes?

Os líderes são o espelho da sociedade. A questão é que não se criou um espaço político legitimado e aceito por todos. O nível nacional continua a ser mais forte e isto determina tensões contínuas entre cada Estado e a Europa. Acrescentemos que, em tempos de crise, com a Europa frágil, o populismo com sua carga de ilusões encontra uma porta aberta.

• Gramsci, encerrado numa cela, entreviu nossos dias: nos Cadernos falou de mundialização da economia contraposta à nacionalização da política. É impressionante.

Na realidade, este processo estava particularmente visível já depois da Primeira Guerra Mundial: o tempo de Gramsci está ligado ao nosso. Observo duas coisas: que a globalização começa muito antes do fim da guerra fria, uma vez que uma crescente interdependência já se inicia no final do século XIX, e também que não existia uma forma de hegemonia evidente. Com a linguagem de hoje, poderíamos dizer que não havia nos anos vinte e trinta uma governance mundial, e esta também é uma tendência de nosso século.

• Outra tendência de nosso século é a crise da esquerda praticamente por toda parte. Como explicá-la?

É um tema que nos atinge e preocupa há tempos. Não é uma crise recente e devemos recuar uns passos, embora seja verdade que ninguém tem a receita. No entanto, existem muitas razões para tal crise: houve a ideia segundo a qual, depois do fim do comunismo, fosse possível fazer uma nova esquerda democrática, era a época da Terceira Via, dos Blairs e Clintons. Uma experiência de esquerda reformista e antitotalitária que emperrou no final do século. Acredito que este foi o início do declínio. Ainda estamos um pouco presos ali e penso que a esquerda, hoje, ainda não ajustou as contas com o paradigma progressista segundo o qual o progresso é sempre linear e irrefreável. A esquerda é uma das vítimas da globalização e entrou em crise com o esgotamento do welfare state. E afinal, como se sabe, quando a política está em crise, com mais razão está a esquerda.

• A direita se ressente menos disso?

A direita é mais capaz, desde sempre, de se valer dos sentimentos das pessoas, do medo. A esquerda não tem este tipo de possibilidade e, portanto, na falta de Política, aquela com o famoso P maiúsculo, sofre mais.

• Um conselho seu.

Estamos sempre naquele ponto: comecemos a rever o paradigma progressista. A esquerda deve viver e deve se contrapor à direita. Cometeremos um erro histórico se pensarmos que estes valores não mais existem.

• Tem razão. Basta ver as reações à lei contra a apologia do fascismo. Disseram que é liberticida. E foi a coisa mais gentil que disseram.

É um fato preocupante porque se baseia numa perda da memória: devemos conservar a consciência de que o fascismo foi uma catástrofe. Não se trata de antifascismo banal, mas de reafirmar a não neutralidade de nossa história. Também os valores da Europa são antitotalitários e a perda de memória é visível naquilo que acontece na Hungria ou na Polônia. Dizer que é liberticida uma lei que condena a apologia do fascismo é contraditório, e o é duas vezes se quem assim se expressa são os que até alguns meses atrás se atribuíam a defesa de nossa Constituição.

• A quem se refere?

Ao Movimento 5 Estrelas, que se entrincheirou por uma Carta que é profundamente antifascista e, ao mesmo tempo, afirma que uma lei que condene a exaltação do vintênio fascista é liberticida.

Nenhum comentário: