- Journal of Democracy em Português
Neste texto argumentamos que no Brasil de hoje convivem, em cada cidadão, em maior ou menor proporção, um individualismo cívico e um personalismo transgressor. O primeiro deseja viver numa sociedade onde as instituições públicas e os cidadãos se orientam pelo rigoroso comprimento da lei e respeito aos princípios do universalismo e mérito. O segundo, vê no Estado um ente estranho e não confiável, o qual deve ser temido ou do qual devemos tirar vantagem, se possível, contornando ou descumprindo suas leis.
É frequente, tanto na bibliografia de ciências sociais como, mais ainda, no debate político, uma visão polarizada entre a sociedade e o Estado, em que, dependendo da orientação ideológica, a primeira é fonte de virtudes e o segundo, de vícios (ou vice-versa). A cultura permeia o conjunto da vida social e suas instituições e, se bem devemos distinguir a sociabilidade cotidiana do sistema político e dos organismos do Estado, eles estão entrelaçados.
Avançar rumo a uma cultura nacional moderna e democrática implica na transformação tanto da sociedade como do Estado, no sentido de que indivíduos, instituições públicas e o sistema político se orientem por valores cívicos. Na realidade, trata-se de subsistemas interligados, e os projetos de mudança que objetivam o aprofundamento da democracia no país devem incluir ambos, a sociedade e o Estado, sem desconhecer que, embora interligados, cada um possui uma certa autonomia, e cabe a cada subsistema agir no sentido de fortalecer a cultura cívica.
Dada a variedade de interpretações sobre o papel da cultura no desenvolvimento brasileiro e as críticas feitas em relação à sua relevância analítica, incluímos um breve anexo onde esclarecemos o uso que fazemos do conceito.
O atual desafio brasileiro
O Brasil vive um momento de transição cultural. Os valores democráticos penetraram na sociedade, aumentando as expectativas de acesso universal a bens sociais de qualidade e de consumo individual e de um Estado a serviço do bem público e não de interesses individuais ou de grupos. Por outro lado, continuam amplamente disseminadas práticas clientelísticas, prevaricação, corrupção, desvio de funções e uso de contatos pessoais para evadir a lei.
Estaríamos assim frente ao velho dilema do Brasil “atrasado” frente a um Brasil “moderno”? Acredito que não. O “atraso” e a “modernidade” de hoje não são os mesmos que os de meio ou um século atrás. A sociedade brasileira mudou profundamente, ainda que certos padrões de longa duração tenham sido reciclados e continuem presentes, porém dentro de um novo contexto social. No lugar de usar conceitos como “atraso” e “modernidade”, que podem dar lugar a equívocos, é mais adequado falar de duas pulsões, ambas presentes nas intuições, nas relações sociais, e em cada indivíduo. Uma que deseja um Estado e cidadãos que se orientem por valores e normas cívicas universais e outra, particularista, que se orienta na vida pública por afetos e interesses pessoais. Desta forma, podemos superar uma perspectiva simplificada que entende a oposição “atraso/modernidade” como referida a grupos sociais concretos, portadores uns de capital humano (educação), que os fazem modernos, e outros carentes do mesmo, e,
portanto, atrasados.
O foco da análise sobre a cultura brasileira contemporânea deve incidir, portanto, não sobre atributos de grupos específicos, mas sim sobre práticas institucionalizadas no conjunto da população, na qual inclusive indivíduos altamente escolarizados com frequência usufruem de privilégios que representam um empecilho para o desenvolvimento democrático. Embora a cultura de contornar a lei esteja amplamente disseminada nos diversos setores da população, a capacidade de mobilizar recursos materiais e/ou políticos para obter vantagens do Estado é diferenciada de acordo com o grupo social. Isto vale tanto para, por exemplo, empresários que fazem uso de seu poder econômico para obter vantagens do Estado, como para servidores públicos (incluindo os políticos eleitos) que recebem altos salários e/ou aposentadorias, além
das mais variadas regalias (como, por exemplo, complementos salariais, bônus, apartamentos funcionais, carros com motorista, pensões especiais) que não condizem com a realidade do país e são chocantes inclusive quando comparados com as práticas de democracias muito mais ricas do que a nossa.
Cultura cívica e nação
Resultado de um processo histórico de longa duração, que se difundiu e enriqueceu a partir das mais diversas experiências nacionais, a cultura cívica moderna é um modelo de organização político-legal de caráter civilizatório, isto é, um fenômeno cultural de longa maturação, que perpassa e engloba um variado conjunto de países. Em cada contexto nacional ela adquire traços próprios, associados a trajetórias políticas, sociais e econômicas e a tradições culturais locais.
A cultura cívica moderna, construída em torno da noção de direitos e deveres de cada cidadão, é o produto de um esforço permanente de formação de cidadãos que se veem a si mesmos e aos outros como iguais, isto é, como sujeitos aos mesmos direitos e deveres estabelecidos para todos pela lei. Pressupõe, portanto, que a interação entre as pessoas no espaço público e a relação com as instituições do Estado se orientem pelo respeito de normas universais que preservam o bem
comum.
A cultura cívica é o resultado de um esforço de socialização e de convivência com instituições que reforça a crença em valores compartilhados e impessoais, isto é, ela não se constrói a partir de laços de afetividade de caráter pessoal entre as pessoas: espera-se de cada indivíduo uma conduta básica universal, independentemente de quem seja ele. Isso determina que a cultura cívica se fundamente na distância social, isto é, ela exige um autocontrole emocional: o outro é alguém a quem devo reconhecer e respeitar como portador de direitos, independentemente dos laços pessoais que comigo tenha, dos ganhos que a relação com ele possa obter, ou dos sentimentos que me possa produzir.
A cultura cívica não determina o resultado do conflito distributivo, que é parte constitutiva da sociedade capitalista, nem das orientações ideológicas e políticas dos cidadãos, embora, como mostra uma ampla bibliografia, sua solidez esteja relacionada aos níveis de igualdade e equidade social, uma vez que eles limitam a influência das assimetrias de poder econômico e político nas ações do governo e das instituições públicas. Altos níveis de desigualdade se expressam igualmente na sociabilidade cotidiana, numa atitude autoritária e preconceituosa em relação aos setores mais pobres da população.
Historicamente, a disseminação da cultura cívica democrática esteve associada ao papel do sistema escolar na formação do Estado nacional. Foi através das escolas que se transmitiu um sistema de valores e crenças que homogeneizaram culturalmente a população (inclusive linguisticamente). Narrativas sobre um passado e um destino nacional comum tiveram um papel central nesse processo. Geraram um sentimento de pertencimento e igualdade e promoveram valores e condutas comuns, com os quais todos os cidadãos deveriam se identificar e pelos quais deveriam pautar sua vida adulta. Dessa forma a cultura cidadã está associada à formação da nação, na qual sociedade e Estado interagem numa dinâmica de construção de valores, instituições e práticas políticas, expressões artísticas e intelectuais que são compartilhadas, mas nem por isso deixa de ser um espaço plural que dá lugar a múltiplas interpretações e significados.
A formação da cultura cívica acompanha a diversidade de trajetórias históricas nacionais, sendo um processo sempre parcial e inacabado, no qual lutas sociais, políticas públicas, transformações culturais e político-ideológicas e em muitos casos também guerras e catástrofes permitiram o aprofundamento, mas em certos momentos também a regressão, dos direitos associados à condição de cidadania. Nossas particularidades são, portanto, uma variação dentro de uma problemática comum, de formação de diversos tipos de cultura cidadã, associada ao desenvolvimento do capitalismo em cada país.
Nenhuma sociedade concreta, portanto, consegue realizar um modelo ideal de sociabilidade e de instituições públicas cívicas, inclusive porque as sociedades capitalistas se caracterizam por sua constante transformação e por promover valores diversos e em maior ou menor medida contraditórios, que dão lugar a soluções instáveis e contestadas. Além disso, um traço fundamental da democracia é o direito a lutar por novos direitos, o que faz dos direitos cidadãos um ideal em movimento.
A longa marcha da formação de valores cívicos no Brasil
As sociedades modernas são sociedades individualistas, onde cada pessoa procura maximizar o que ela percebe como sendo seus interesses. Uma sociedade individualista, para não se transformar num “salve-se quem e como puder”, supõe a existência de regras de convivência que limitam o que é permitido e assim organizam a sociedade. O individualismo cívico supõe que essas regras, no espaço público, são universais e aplicadas pelo Estado com o mesmo rigor a todos os cidadãos, embora nunca de forma perfeita, pois em cada cultura nacional o individualismo cívico vem acompanhado e é temperado pelos mais variados fatores, como, por exemplo, no Japão, pela tradição de respeito às hierarquias, nos Estados Unidos, pelo preconceito racial, e, e, no caso brasileiro, pelo individualismo personalista transgressor.
O caso brasileiro, como todo processo de formação nacional, traz no seu bojo uma trajetória de realizações e frustrações. Embora haja uma tendência de comparar o Brasil, numa visão estática e anacrônica, com casos, “mais bem-sucedidos”, o que leva a analisar o país pelo viés dos situados na parte de cima dos rankings internacionais que procuram medir a densidade de culturas cívicas, e nos quais ocupamos um lugar intermediário, também é válido analisar o Brasil em contraposição a países que se se encontram na parte inferior da lista. Ou seja, o Brasil é tanto um caso de sucesso relativo como, em vários sentidos, de sucesso absoluto. Por exemplo, entre as nações com grandes populações e territórios, o Brasil apresenta uma homogeneidade linguística e cultural incomparável, movimentos separatistas ou conflitos étnicos ou religiosos relevantes. E, embora os preconceitos raciais ou étnicos continuem presentes, eles não se institucionalizaram em movimentos político-ideológicos que apelam à supremacia racial e à xenofobia.
Qual foi a trajetória de formação da cultura cívica brasileira? Como chegamos ao momento atual em que uma sociabilidade cotidiana e instituições públicas cívicas convivem com valores e práticas em boa medida opostos a elas, produzindo um profundo mal-estar social que afeta negativamente as expectativas sobre o futuro da nação? O que está acontecendo? Por que continuam a existir padrões de sociabilidade e de funcionamento das instituições que aparentemente deveriam pertencer ao passado? Por que os brasileiros, ao lado de expectativas e desejos de uma cultura cívica, mantêm, em maior ou menor medida, uma sociabilidade e instituições formais ainda permeadas pelo personalismo transgressor e por instituições patrimonialistas?
Ainda que esteja fora dos limites deste trabalho realizar um detalhamento da formação da cultura cívica no Brasil, podemos indicar os grandes traços que marcaram sua formação contemporânea.
A despeito de que o arcabouço legal da sociedade brasileira, desde o fim da escravidão, tenha sido o de uma sociedade liberal que supunha uma cultura cívica, a realidade de profundas desigualdades sociais, com relações de trabalho no mundo rural fundadas na dependência pessoal e de setores excluídos do mercado de trabalho formal no meio urbano, limitou a efetiva penetração de valores cívicos na população. No entanto, a formação da sociedade e do Estado brasileiro foi um processo complexo que não pode ser reduzido ao papel que tiveram as profundas desigualdades sociais.
O Estado brasileiro desenvolveu no decorrer de sua história um conjunto de instituições públicas que asseguraram a unidade nacional, a consolidação (e expansão) de suas fronteiras e, em particular a partir da segunda metade do século passado, um conjunto de organismos públicos que permitiram ao Estado regular e intervir de forma eficaz na economia (que incluía um grande número de empresas públicas) e nas relações formais de trabalho. Um Estado que formou no seu topo um quadro técnico de servidores públicos de alta qualidade, através de concursos, possivelmente sem comparação na América Latina. Foi igualmente um Estado – incluindo as Forças Armadas – que funcionou como uma das principais fontes de ocupação e ascensão social para os setores (em geral) melhor educados da população, pois lhes oferecia um ingresso razoável e vitalício. Um emprego público que, além de ingresso, permitia frequentemente adquirir posições de poder, a partir das quais se podia intercambiar e/ou vender favores. Processo similar se reproduzia no sistema político, no qual posições de influência eram utilizadas para distribuir empregos, liberar processos administrativos, esquivar-se da lei e indicar empresas a serem contratadas, muitas vezes em coalizão com funcionários públicos em cargos de direção indicados pelos próprios políticos.
A formação do Estado e da sociedade brasileira foi um processo interativo, de constituição de diversas camadas sociais de trabalhadores, uma formada por funcionários do setor público com robustos direitos corporativos vitalícios e alguns setores muito bem pagos, outra de empregados no setor formal com proteção de direitos trabalhistas e sindicatos financiados por impostos obrigatórios, e uma terceira de trabalhadores autônomos e assalariados do setor informal, de costas para o Estado, com uma boa parte da população rural e urbana excluída de direitos sociais e com acesso restrito a serviços públicos básicos. No mundo empresarial uma estratificação similar pode ser feita em termos de maior ou menor proximidade ao Estado, seja em termos de políticas protecionistas, de contratistas do Estado, ou (des)cumprimento da legislação.
O sucesso do Estado brasileiro em promover o crescimento econômico (um dos mais altos do mundo entre 1920 e 1980) se contrapõe a seu fracasso na capacidade de integrar setores importantes da população ao sistema escolar e ao desenvolvimento de infraestruturas e habitação para os setores mais pobres. Desde os serviços de saúde pública e rede escolar aos sistemas de aposentadoria, passando por políticas de urbanização, sistemas de esgoto, eletricidade e água, a norma foi de um acesso socialmente diferenciado.
Desenvolveu-se assim uma cultura política que levou aos mais diversos setores da população a ver no Estado não um órgão impessoal representativo da nação com o qual se identificam, mais um corpo do qual devem se proteger e/ou extrair benefícios, uma visão segundo a qual para os ricos e poderosos prevalecem o privilégio e a impunidade, e para os mais pobres, o abandono e a arbitrariedade. Criou-se uma sociedade não só desigual economicamente, mas também em termos de direitos civis e acesso a bens públicos, na qual os setores excluídos dependem da “boa vontade” dos políticos. Obras inauguradas com uma fanfarra proselitista, indicando à população pobre que elas não resultam de um direito cidadão “natural”, mas de atos que dependem da disposição paternalista dos políticos.
No meio rural, até os anos1960, as formas de semiservidão, associadas a relações de dependência em relação aos grandes proprietários, era o principal mecanismo de controle e dominação. No meio urbano, o principal papel da polícia era o de contenção da população pobre, que, caso não possuísse carteira de trabalho, era vista como suspeita e podia ser presa e frequentemente maltratada ou mesmo torturada nas delegacias.
A organização da sociedade, que inclui um amplo setor informal, alimentou a cultura do “agir de costas para o Estado”, a cultura do quebra-galho esteve e continua presente inclusive no funcionalismo público, onde não raro o salário é complementado com algum emprego secundário ou “biscate”, que depende geralmente de uma dedicação menor e horário flexível e dificilmente será questionado pelo colega ou pela chefia, pois eles mesmos em algum momento também recorrerão a essas práticas.
As altíssimas taxas de crescimento econômico, embora parcialmente neutralizadas pelo crescimento populacional, sustentaram amplos processos de mobilidade social no século 20, que alimentaram a visão do Brasil como o “país do futuro”. Na realidade era o país do presente, pois para boa parte da população o presente era cada vez melhor, ainda que o patamar inicial fosse baixo e as desigualdades sociais, pronunciadas. A dinâmica sociocultural do Brasil esteve assim associada ao crescimento econômico, que até décadas recentes incluía uma fronteira agrícola em expansão. O proverbial otimismo brasileiro não foi uma construção ideológica que a população ingenuamente acatou, ele se sustentou num amplo movimento de ascensão social, incluindo a mobilidade do campo para a cidade, que significou, apesar das condições urbanas e do sistema escolar precário, uma melhoria substancial nas condições de vida.
A integração cultural dos setores mais pobres da população brasileira percorreu caminhos em boa medida à margem do Estado. A religiosidade popular foi e continua sendo um elemento importante na configuração de valores e crenças dos setores mais pobres, às vezes como marco de sociabilidade e apoio mútuo, mas sobretudo permitindo suportar a dureza da vida cotidiana e esperar por um futuro melhor com a ajuda da proteção divina. A confraternização em torno do sentimento de nação passa mais pela música, pela comida, pelo esporte e pelas festividades, do que por símbolos, e heróis que encarnem as dimensões da nação como ente político. Outro componente igualmente importante na construção de uma cultura brasileira compartilhada nacionalmente foram os meios de comunicação de massas, primeiro o rádio e depois a televisão, que consolidou um universo cultural comum em torno das novelas, dos programas de auditório, da música e dos telejornais.
A identificação da sociedade brasileira com a nação se deu assim, em boa medida, “por fora de” uma cultura cívica, pois as relações com o Estado na vida cotidiana eram fonte de favores e proteção para uns, ou um sistema distante ou repressor para outros. O uso da “carteirada” ou do “você sabe com que está falando?” não se sustentava no respeito a um sistema de hierarquias fundada na tradição, mas no sentimento de impunidade de uns e no temor aos poderosos por parte dos setores subalternos.
A sociabilidade brasileira
Neste contexto se desenvolveu uma sociabilidade em que as relações pessoais ocupam um papel central para obter vantagens, contornar a lei ou se proteger frente aos abusos de autoridade de um Estado que oferece serviços públicos insuficientes, permeados por corrupção e envolvidos em um emaranhado legal que favoriza os achaques de funcionários. Assim a relação com o poder público passava por um despachante com relações “privilegiadas”, ou por ser amigo ou “amigo de um amigo” de um funcionário público ou político. Quanto maior a rede de “amigos” ou “conhecidos”, maiores as chances de se livrar de um auto de infração, um boletim de ocorrência ou um processo judicial, obter um emprego ou ter acesso a qualquer tipo de favor de funcionários públicos.
Num sistema de instituições (em particular, mas não somente, as que regulam a aplicação de regulamentos, da lei e da ordem) percebidas pelos cidadãos como venais e morosas, a sociabilidade brasileira é caracterizada pela procura de contornar conflitos nas relações pessoais.
Nessa sociabilidade, sabe-se que, mais cedo ou mais tarde, o indivíduo poderá depender dos favores do outro, motivo pelo qual evita “criar confusão” ao exigir que a norma seja cumprida. Valoriza-se assim o “deixa para lá”, o que resulta na aceitação de condutas erradas
de colegas ou de funcionários.
Uma cultura que evita o conflito, onde prevalece o conselho de “melhor esquecer” para que não se produzam ressentimentos e conflitos futuros. Uma “política do esquecimento” que permeia tanto as relações cotidianas como os personagens públicos, que faz dos brasileiros e do Brasil um país sem memória. Símbolo de uma cultura onde o passado da pessoa não compromete nem afeta o presente é a passagem dos políticos brasileiros por inúmeros partidos, por vezes abarcando todo o leque ideológico.
O jeitinho, o favorecimento, o quebra-galho, todos eles alimentados por uma expectativa de impunidade, desembocam e reproduzem cotidianamente uma cultura de indisciplina, de aversão ou de drible da norma universal. Indisciplina que a escola e as empresas (muito mais no setor privado do que no público) procuram domesticar, mas com impacto limitado fora desses espaços. Dificilmente teria surgido no Brasil um Michel Foucault, autor lido avidamente por muitos de nossos intelectuais, pois sempre estivemos distantes, ou no mínimo seguimos caminhos bastante diferentes, das formas de disciplinamento ao quais foram submetidos os franceses (sustentadas por uma eficaz máquina estatal), que não à toa se encantam com a “espontaneidade brasileira”.
Há certamente sabedoria nessa sociabilidade avessa ao conflito, pois não alimenta ressentimentos que amarram o presente das pessoas e a vida política ao peso do passado. Mas, ao reiterar-se no espaço público ou nas relações de trabalho a aversão ao conflito e o cultivo do esquecimento, estes se transformam num mecanismo que reforça o sistema de condutas que corroem o funcionamento das instituições e favorecem a impunidade. Igualmente, se a disposição de flexibilizar normas e abrir exceções em situações pessoais particulares, tem, pelo menos do ângulo comparado, o mérito de fugir de atitudes rígidas e por vezes desumanizadoras presentes em outras culturas, ela corrói o sentido de responsabilidade e de princípios válidos para todos. E, não podemos esquecer, essa cultura “pacificadora” não está presente nos espaços onde vivem os setores mais pobres da população, que suportam a violência de gangues armadas e a ação abusiva da polícia, colocando várias cidades do país entre as líderes em homicídios no ranking mundial.
Não se trata, contudo, de reduzir a sociabilidade brasileira à pura instrumentalidade, pois nem todo país com um Estado clientelístico produz uma cultura similar à nossa. A valorização dos laços primários na cultura brasileira está também associada a uma sociabilidade lúdica e festiva, a formas expressivas de demonstração de afetividade, ao prazer gregário da convivência e da conversa difusa, e à capacidade, em particular entre os setores populares, de disfrutar do presente apesar das dificuldades materiais. As origens desses traços remontam à complexa trajetória da história da cultura brasileira e à forma em que foram se tecendo as relações entre as diversas tradições dos grandes contingentes populacionais, o africano, o índio e o europeu, e a um catolicismo popular sincrético, desamarrado do catecismo e da oposição carne/espírito. Como esses traços influenciaram e foram influenciados pela lógica de um sistema social e institucional que favorece e depende de laços primários é um tema que exige uma pesquisa histórica fora dos limites deste trabalho. Certamente não se trata de simples relação funcional, pois além de comportar enorme diversidade de variações sociais e regionais, cada vez mais, com a expansão das igrejas evangélicas, surgem condutas que questionam formas de sociabilidade dominantes até tempos recentes.
Se não se pode reduzir a afetividade, a calorosidade, o gregarismo e a disposição de compartilhar relatos sobre a vida privada a simples mecanismos adaptativos, eles não deixam de ser funcionais em um sistema social que depende de se ter o contato certo. Devemos lembrar que o peso de laços afetivos, redes pessoais e posições de poder continuam presentes inclusive em países com uma cultura cívica consolidada. Mas no espaço público brasileiro, e em países similares ao nosso, a exceção é a regra, gerando expectativas de que as normas legais não sejam aplicadas, mais ainda quando se trata de indivíduos com posições de poder no Estado e na economia.
Um Estado arbitrário e disfuncional incentiva que as relações sociais no espaço público sejam construídas de forma personalizada, gerando um círculo vicioso no qual os indivíduos estão sempre dispostos a considerar alternativas para driblar a lei. Não se trata de argumentar, seja do ponto de vista legal ou moral, que as pequenas transgressões cotidianas sejam comparáveis aos crimes de corrupção cometidos por políticos, funcionários públicos e empresários. Mas ambos, no contexto brasileiro, compartem e retroalimentam uma cultura de desrespeito às normas universais.
A irrupção de expectativas cívicas
Nas últimas décadas, e de forma mais explícita em tempos recentes, um número significativo de cidadãos passou a vocalizar na rua seu mal-estar com as disfunções, os desperdícios e a corrupção no sistema estatal. O que aconteceu? Sem nos deter numa análise detalhada, podemos indicar que convergiram para essa “tomada de consciência” de expectativas igualitárias uma série de processos:
1. Com o peso crescente da carga tributária, os cidadãos passaram a ficar mais cientes do custo de manutenção do Estado, do qual se ressentem seja porque, nos setores de classe média, os tributos não produzem um retorno compatível em serviços públicos, o que obriga a que estes sejam adquiridos no setor privado, ou, nas classes de menor renda, porque se defrontam com a baixa qualidade dos serviços do Estado, ao que se junta o mal-estar geral com a incapacidade do Estado de enfrentar o aumento da violência.
2. A transição urbana, o fechamento da fronteira agrícola e o baixo crescimento econômico entorpeceram os mecanismos de mobilidade social, que passou a ser associada (e buscada) através da educação.
3. A integração dos mais diversos setores da população ao consumo de massas, facilitada pela diminuição dos preços dos bens duráveis e pelo acesso ao sistema de crédito e financeiro, criaram expectativas que, em uma geração anterior, simplesmente não existiam ou estavam além do universo imaginado como possível.
4. A Constituição de 1988, que universalizou direitos e criou novos mecanismos de defesa e de controle da cidadania, como o Ministério Público, os juizados de pequenas causas e os direitos do consumidor, aliados ao papel da imprensa e da sociedade civil, conscientizaram os cidadãos, inclusive de setores mais pobres, de seus direitos.
5. Os processos eleitorais, apesar das disfunções do sistema partidário, aumentaram as expectativas de melhoria de vida por parte da população.
6. A expansão de diferentes igrejas evangélicas entre os setores populares, centradas numa mensagem que promove o esforço pessoal, o mérito e o empreendedorismo, contribuiu para distanciá-los da visão paternalista em relação ao Estado.
7. Finalmente, a recente crise econômica, conjugada com a Operação Lava Jato, aumentou o mal-estar da população com a corrupção endêmica, o sistema de distribuição de privilégios e a impunidade, disseminados nas diversas instituições constitutivas do Estado brasileiro.
A frustração com as disfuncionalidades, os desperdícios e os abusos que assolam o Estado pode levar a simplificações e a polarizações perigosas para a democracia. A frustração com o sistema político abre espaço para a tentação autoritária, aproveitada por políticos que promovem
um discurso moralista de salvadores da pátria. Igualmente a visão que enxerga o Estado como fonte de todos os males em contraposição a um mercado naturalmente virtuoso esquece que não existe sociedade funcional e democrática sem um Estado capaz de prover bens públicos essenciais, regular a economia e proteger os cidadãos. Assim a questão não é a existência de um Estado grande ou pequeno, mas um Estado a serviço do bem público.
O desafio de mudar o país implica numa mutação tanto do Estado como da sociedade, com particular responsabilidade cabendo aos políticos e às classes médias e altas, assim como as corporações de funcionários públicos, pelo maior poder de ação, comunicação e em função dos privilégios que possuem.
Conclusões: olhando para o futuro
Os problemas brasileiros são particulares e universais: cada país vive à sua maneira problemas que de alguma forma estão presentes em todas as partes do globo. O que faz cada nação diferente das outras são as diversas capacidades e formas de organizar e mobilizar seus recursos humanos para enfrentar e superar desafios.
Inúmeros trabalhos foram dedicados à relação entre os valores cívicos e o desenvolvimento econômico. É possível argumentar a favor, assim como discordar, das relações virtuosas, ou mesmo necessárias, entre ambos, com base nas trajetórias de diversos países. Mas o que se coloca hoje no Brasil não é uma discussão acadêmica sobre cultura cívica e desenvolvimento. A vontade de fortalecer a cultura cívica é uma demanda central que emerge da própria sociedade e que se coloca, portanto, como condição para assegurar a cooperação dos agentes sociais e, assim, viabilizar o crescimento econômico em torno de uma visão de nação, que é sempre um ideal cultural e não pode ser reduzido a um programa econômico. O desafio é criar um movimento virtuoso onde as reformas promovidas pelo Estado reforcem a transformação da sociabilidade e que esta, por sua vez, fortaleça o funcionamento cívico das instituições públicas.
A Constituição de 1988 e as políticas de governos subsequentes procuraram mudar o estado das coisas, mais isto foi feito mais no sentido de responsabilidade fiscal – que limitou a capacidade dos cargos políticos executivos de tratar as contas públicas de forma irresponsável – e de crescente inclusão dos setores mais desfavorecidos, e não de uma ampla reformulação do Estado e do sistema político. Se, por um lado, fortaleceu os instrumentos de controle cidadão, por outro não mexeu em “direitos adquiridos” que incluem privilégios injustos e insustentáveis.
A construção de uma cultura cívica exige um esforço de reflexão, diálogo e confronto de ideias por parte de todos os atores sociais e políticos, distante da polarização que caracteriza boa parte do atual debate no espaço público brasileiro, construída em torno da vitimização e da estigmatização do outro. A elaboração de agendas para o desenvolvimento do país exige uma cultura cívica que não elimine as diferenças, algo inerente à vida democrática, mas que reconheça que as políticas públicas exigem confrontar interesses estabelecidos que beneficiam determinados grupos em detrimento de outros. Reduzir projetos de desenvolvimento econômico a uma argumentação puramente tecnocrática redunda em empobrecimento da vida política, encobrindo os valores que os orientam e o conflito distributivo que os perpassa.
O conflito entre o Brasil cívico e o Brasil personalista está dentro de cada cidadão, que, por um lado, aspira viver em uma sociedade e em um Estado mais justos, orientados por valores universais, e, por outro lado, compactua (de forma ativa ou passiva) com práticas que travam o desenvolvimento e o aprofundamento da democracia no país. Dito isso, não se trata de reduzir os conflitos sociais que atravessam hoje o país a um mero conflito cultural. As formas de organização do sistema político e da administração pública e os poderes do Estado consolidaram vantagens materiais que ofendem o senso comum, mas que são defendidas tenazmente por cada corporação de funcionários públicos, por setores empresariais e pelos políticos.
A transformação do Brasil não será produto de um processo unívoco que se dará da noite para o dia. Uma dinâmica virtuosa exigirá reformas cumulativas do sistema político, da administração pública e das políticas públicas em paralelo à ação de uma cidadania ativa comprometida com uma cultura cívica. Um processo difícil, que se dá tanto no campo da conduta individual como no da ação coletiva expressada na vida política, e que deverá enfrentar interesses e privilégios
cristalizados.
O desafio é caminhar na direção de um Brasil que sintetize o melhor de sua cultura com valores cívicos, que poderá manter laços calorosos entre as pessoas sem que eles se trasladem do espaço privado para a esfera pública e se traduzam em uso do poder político para beneficiar, privilegiar ou proteger conhecidos e apadrinhados. Uma cultura que será capaz de preservar certa efusividade e os afetos no espaço público, sem que isso implique em perturbação do direito alheio; uma sociabilidade na qual o lúdico e o prazer gregário de conversar e estar junto não sacrifique de forma relevante as obrigações laborais, mas, pelo contrário, as torne mais prazerosas; e a procura de não radicalizar conflitos não signifique sacrificar a defesa do correto. Deverá ser um país em que as pessoas não usem o termo “legal” para se referir a situações prazerosas, mas sim à obediência à lei, e no qual a enorme criatividade do povo brasileiro esteja a serviço do avanço do bem comum, em vez de ser desperdiçada em exercícios de driblar as regulações e os controles governamentais.
Anexo: sobre o uso do conceito de cultura nacional
Que cada país possui caraterísticas culturais próprias é evidente a olhos nus. A experiência histórica mostra que essas características são fundamentais para os sucessos, as realizações e as conquistas, assim como por eventuais dificuldades, fracassos e tragédias históricas. Mas, apesar de sua óbvia importância, o tema da cultura nacional apresenta enormes dificuldades para as ciências sociais. Trata-se de uma área para o qual não existe uma metodologia clara de análise e investigação. Enquetes de opinião pública só refletem de forma muito parcial as práticas efetivas dos entrevistados (um exemplo é o fato de a grande maioria dos brasileiros não se considerar racista, mas acreditar que o racismo se encontra amplamente disseminado no país). Elas também não conseguem captar a diversidade de significados que as pessoas associam a valores e crenças (por exemplo, noções como felicidade, autoridade ou democracia).
A questão da cultura nacional ocupou lugar destacado nas obras de precursores das ciências sociais no Brasil. Trata-se de um tema que perpassa praticamente todas as obras dos pensadores sociais até os anos 60, quando foi relegado a um segundo plano.2 Desde então, os escritos de Roberto DaMatta nos quais os temas da cultura nacional e das formas de sociabilidade brasileira ocupam lugar central, constituem uma das poucas exceções. Mais recentemente, Eduardo Giannetti da Fonseca, em “Trópicos utópicos — Uma perspectiva brasileira da crise civilizatória”,3 analisou as virtualidades da cultura brasileira no contexto dos desafios do século 21.
Os principais argumentos para esse aparente desinteresse são: a) a noção de cultura nacional desconsideraria as diferenças e desigualdades entre os distintos grupos sociais; b) as diferentes visões de uma cultura nacional brasileira seriam elaborações de intelectuais, geralmente a serviço do Estado e/ou das classes dominantes, com o objetivo de submeter os grupos subalternos, diluindo o conflito social e produzindo uma visão mistificadora de interesse comum. O livro de Carlos Guilherme Mota, “Ideologia da cultura brasileira’,4 marcou essa visão, atualizada mais recentemente por Jessé Souza, em “A tolice da inteligência brasileira: ou como o país se deixa manipular pelaelite”.5
As críticas mencionadas devem ser consideradas, mas não justificam que o abandono do tema, pois as dificuldades de ordem metodológica e conceitual, não eliminam o fato de que as culturas nacionais existem e afetam de forma decisiva o destino das nações. No tratamento do tema devemos ter o cuidado de lembrar que, em primeiro lugar, a cultura nacional não é um fenômeno estático, embora algumas características possam ser de “longa duração”, pois estão enraizadas em realidades de grande estabilidade, como, no caso brasileiro, um país com fronteiras consolidadas, sem inimigos externos nem memória de guerras, profunda desigualdade social e com uma população religiosa.
Em segundo lugar, os valores culturais não são fenômenos “mentais”, que existem independentemente dos processos sociais. A cultura é formada pelas expectativas que temos em relação à conduta dos outros indivíduos ou de instituições, e que precisam ser constantemente confirmadas. À medida que a realidade social muda, ela vai transformando a cultura, por meio de um processo de reapropriação de valores preexistentes, dando-lhes novos significados e funções.
Em terceiro lugar, o Brasil, ou qualquer outro país, é produto de sua história, mas não se explica por valores culturais imersos num passado distante. Por exemplo, a escravidão, depois de mais de um século da abolição, só é relevante para entender o presente na medida que expressões de racismo, exclusão e violência foram se reconstituindo no decorrer das transformações sociais. A cultura de uma nação se explica menos ainda por traços culturais genéricos, que são compartilhados por países muito diferentes, como o catolicismo ou a “herança ibérica”. A Irlanda e o Brasil são majoritariamente católicos, sendo que o primeiro é um dos países com ingresso per capita mais alto no mundo. E a Espanha, país “ibérico” por definição, apresenta enormes diferenças se comparada ao Brasil.
Em quarto lugar, a “cultura nacional” não constitui um conjunto coerente de valores e crenças, nem seus traços se encontram distribuídos de forma homogênea entre toda a população. Menos ainda ela pode ser reduzida às versões intelectualizadas da cultura nacional, tal como foram elaboradas por pensadores sociais e/ou veiculadas pelo Estado através de suas políticas culturais. A cultura nacional, portanto, não deve ser confundida com teorias sobre sua relação com políticas públicas que promovam visões de “identidade nacional”,6 ainda que elas certamente influenciem as crenças da população e as práticas sociais.
Finalmente, falar de cultura “nacional” não implica em considerar que tratamos de um universo fechado, isolado das tendências que percorrem o mundo contemporâneo. Metropolização, novos meios de comunicação, globalização, individualização, consumismo, mal-estar com o sistema de representação política, direitos humanos, ecologia, para mencionar alguns poucos exemplos, são fenômenos globais que permeiam e transformam a cultura brasileira e influenciam, de forma
desigual, os diversos setores da população, ao mesmo tempo em que assumem colorações locais.
1 Agradeço o apoio dado pelo IPEA e a CEPAL à elaboração do texto que serviu como base para este artigo, e os comentários de Danilo Martuccelli, Antonio Mitre e Sergio Fausto a uma versão preliminar. Obviamente, nenhum deles é responsável pelo conteúdo do texto.
2 Entre os trabalhos mais recentes sobre o tema ver Fernando Henrique Cardoso, Pensadores que inventaram o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
3 São Paulo: Companhia das Letras, 2016.
4 São Paulo: Editorial Ática, 1994.
5 São Paulo: LeYa, 2015.
6 Políticas públicas orientadas a fortalecer a “identidade nacional” em geral estão associadas a regimes autoritários. Sobre o período Vargas ver: Simon Schwartzman, Helena Maria Bousquet Bomeny, Vanda Maria Ribeiro Costa. Tempos de Capanema, São Paulo: Editora da Universidade de São Pualo e Editora Paz e Terra,
1984.
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Bernardo Sorj é um sociólogo brasileiro, professor titular aposentado de Sociologia na Universidade Federal do Rio de Janeiro e diretor do Centro Edelstein de Pesquisas Sociais e da Plataforma Democrática. Sorj publicou 30 livros e mais de 100 artigos sobre desenvolvimento político da América Latina, relações internacionais, o impacto social das novas tecnologias, teoria social e judaísmo, entre eles A Nova Sociedade Brasileira e A Democracia Inesperada: direitos humanos, sociedade civil e crise da representação política.
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