segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Cacá Diegues: A cota das minorias

- O Globo

O cinema é a única cultura nacional que compete com o produto estrangeiro em pé de igualdade

O que está hoje em perigo em todo o mundo é o humanismo que iluminou o pensamento ocidental durante os últimos séculos. A ideia de que o ser humano é o centro do universo que interessa, o alvo de tudo que deve ser desenvolvido, protegido e preservado, começa a não encaixar mais em novas culturas políticas espalhadas por aí. Inclusive no Ocidente que o inventou desde a Antiguidade grega, e que depois o manteve subterrâneo até o Renascimento.

O apogeu histórico do humanismo se dá com o iluminismo, a ideia de que a razão pode tudo resolver. Foi graças a essa concepção do conhecimento como instrumento de nossa compreensão e atuação no mundo que construímos a civilização em que vivemos.

A partir do século XV, com a invenção da imprensa, uma nova tecnologia, parte da Europa se alfabetizou, e os monges copistas deixaram de ser os detentores únicos dos segredos do conhecimento. Grandes pensadores alteraram os padrões sociais e fizeram as culturas valorizarem o homem comum. Como a desgraça nunca desapareceu completamente do mundo real do presente, o ser humano teve que contar com o futuro para iluminar seu rumo. Os grandes humanismos, religiosos ou ateus, tiveram que inventar o paraíso celeste e a Parusia, a sociedade sem classes e a harmonia absoluta com a natureza, essas coisas que dão sentido à vida depois que ela acaba.

O humanismo inventou a democracia moderna. Os gregos já a haviam praticado, mas dela só se beneficiava a elite cidadã. O povo e os escravos não tinham direito a ela. Agora, no nascimento da democracia moderna, todos têm teoricamente direito a ela, aperfeiçoada de acordo com as tradições de cada lugar. Embora a democracia acabe sempre por servir às maiorias, nela o minoritário pode sempre sobreviver. John Stuart Mill, um inglês precursor de ideias que floresceram no século XIX, dizia que a democracia era a “tirania da maioria”.

Nessa segunda década do século XXI, outra nova tecnologia inventada pelo homem desbanca a imprensa e o audiovisual, as formas ilustres de conhecimento até seu surgimento. Com ela, os poderosos não precisam mais ser maioria para exercer sua tirania. Através dela, eles podem saber onde está cada um de nós, pensando o quê, e nos manipular na direção que julgarem mais conveniente. Se os cérebros de Adolf Hitler ou Joseph Stalin tivessem conhecido a ciência digital e a internet, o mundo hoje seria bastante diferente. Diferente para muito pior.

O mal não está nas tecnologias que inventamos e continuaremos a inventar, mas no uso delas. E sobretudo no que pensam e desejam dela os que a sabem usar muito bem. Os políticos que melhor a utilizaram até agora, por exemplo, foi gente como Donald Trump, um padrão que começa a se repetir pelo mundo afora.

O conflito entre os populistas que usam a força da internet e os seus objetivos só tende a crescer, impedindo que tudo isso acabe em paz. Eles são necessariamente nacionalistas e dependem da mais globalista das tecnologias, uma que não tem limites territorial, linguístico ou cultural. Os algoritmos não têm pátria ou língua, não têm origem em mitos nacionais, costumes antigos ou bandeiras a respeitar. Atentem, por exemplo, para essa moda de fotos de pessoas com diferença de dez anos em suas vidas. O que parece ser apenas uma curiosidade, uma brincadeira típica do sistema digital, pode se tornar material para um completo fichário. Não só de quem a usa, como também do grupo, partido ou comunidade a que pertence.

Diz Pedro Doria, especialista no assunto: “Tecnologias de vigilância que vêm fácil demais e podem ser exploradas sem regras claras serão abusadas. Porque o abuso é da natureza de quem tem poder”. Como ele ainda afirma: “Bicho complicado, a democracia”.

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Não tem sido dolorosa a passagem de governo no plano da cultura. Tanto o ministro Osmar Terra, quanto o secretário José Henrique Pires, têm sido atenciosos com as questões do cinema brasileiro. A mais grave, nessa virada de ano, é a da ausência de um decreto de Cota de Tela para os filmes brasileiros, que deveria ter sido promulgado pela gestão anterior.

O cinema é a única cultura nacional que compete com o produto estrangeiro em pé de igualdade. O teatro, a televisão, o livro e até o jornal não enfrentam seus similares estrangeiros nos mesmos postos de venda, sob as mesmas condições, como acontece com o cinema. E agora, com o avanço do streaming, a Cota é mais urgente ainda.

Se não houver Cota de Tela para nossos filmes, como acontece em todos os países do mundo, do México à França, da China à India, da Coreia do Sul ao Egito, teremos sempre dificuldade de alcançar nosso público, enfrentando as centenas de salas dos “Aquaman”. Nossa expectativa e esperança é a de que o Ministério da Cidadania e sua Secretaria de Cultura promulguem um novo decreto para 2019.

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