- O Estado de S. Paulo
Este ano será de transição entre a era pós-guerra fria e uma nova, a ser definida
Os recentes acontecimentos, conflitos, alianças e eleições ao redor do mundo apontam para uma conclusão dramática: 2019 poderá ser considerado, dentro de uma perspectiva histórica, o fim de uma era. O corrente ano pode ser descrito como um período de transição entre a era pós-guerra fria e uma nova, apenas no aguardo de uma definição. Será um ano em que veremos um grande número de eventos nos levando a situações, em muitos casos, sem retorno. Será um ano de ansiedades e expectativas, suspeitas e medo do que o futuro pode trazer, na medida em que os países procurarão adiar o começo de crises que não poderão evitar.
Na economia global, no cenário político internacional e na geopolítica podem ser identificados movimentos que deverão caracterizar a nova etapa que apenas se inicia.
A economia global dá claros sinais de esgotamento. O crescimento das economias desenvolvidas e emergentes reduz-se pelos efeitos da guerra comercial de Donald Trump, dos problemas fiscais nos EUA e países europeu e de tensões geopolíticas. A ameaça de nova recessão aparece sombria no horizonte e sua superação será dificultada pela política interna populista e nacionalista partidária dos principais países desenvolvidos, que procurará se aproveitar da situação. Os EUA, ainda por algum tempo a potência dominante no mundo, veem reduzida a distância em relação a seus rivais, enquanto surgem múltiplos polos de poder político e econômico.
No cenário político internacional, o populismo de direita na Europa e nas Américas, as diferentes formas de nacionalismos e xenofobismos criam problemas novos, enquanto os dramas internos, em muitos países, acentuam os deslocamentos populacionais e novas ondas de refugiados surgem em várias partes do mundo, como na América do Sul. A crise do multilateralismo se acentua. Nas Nações Unidas, o Conselho de Segurança, seu órgão máximo, está cada vez mais marginalizado e com representatividade cadente. A crítica das organizações multilaterais, ganha adeptos, inclusive no Brasil. Até mesmo o diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) defende o bilateralismo.
As questões representadas pelos programas nucleares e balísticos da Coreia do Norte, do Irã, os conflitos no grande Oriente Médio, a perda relativa de poder e influência da Europa, com a saída do Reino Unido da União Europeia, o deslocamento do eixo político e econômico para a Ásia, o renascimento da Doutrina Monroe, com a volta da influência dos EUA na América Latina, e a crescente desigualdade entre os países e dentro deles complementam um panorama global em que sobressaem, em especial, três fatos marcantes: a instável e imprevisível política externa de Trump, a disputa comercial entre os EUA e a China e a crescente aproximação desta com a Rússia.
A rivalidade geopolítica pela hegemonia no século 21 entre as duas maiores economias do mundo é uma ameaça à economia global e seus efeitos vão ser sentidos por muito tempo. O documento Estratégia de Segurança Nacional, de Trump, afirma que a China e a Rússia desafiam o poder, a influência e os interesses dos EUA e tentam erodir a segurança e a prosperidade norte-americanas. Por outro lado, Beijing e Moscou estão se aproximando para enfrentar o que eles percebem como uma ameaça de Washington. O vice presidente norte-americano, Mike Pence, acenou com o início de uma nova guerra fria com a China. Sanções e isolamento contra a Rússia e escalada protecionista comercial contra a China fizeram o presidente russo, Vladimir Putin, se voltar para a Ásia e a China ampliar sua cooperação com Moscou.
Apesar das diferenças quanto aos respectivos interesses nacionais, valores e culturas, com uma visão de médio e longo prazos, os dois países põem de lado rivalidades, divisões e lutas e estabelecem um alinhamento que abrange coordenação em diversas áreas. Entre elas, defesa (fornecimento de equipamentos militares), diplomacia (coordenação de posições em questões internacionais no Conselho de Segurança da ONU, no Brics, na Organização de Xangai), economia (a China tornou-se o maior parceiro comercial de Moscou), energia (a Rússia, com financiamento da China, tornou viável a exploração no Círculo Polar Ártico de uma das maiores reservas de gás do mundo). Beijing tornou-se o maior importador de petróleo russo e, em 2019, o segundo mercado para o gás, como resultado de acordo histórico de US$ 400 bilhões, assinado há poucos anos. A Rússia ainda está promovendo a integração econômica com partes da Ásia e isso se casa com a iniciativa chinesa de reconstrução da Rota da Seda (Belt and Road Initiative), formando a Eurásia Maior, o que colocará Moscou como peça chave na geoeconomia e geopolítica da região, ligando o norte da Eurásia com a Ásia Central e Sudeste. Rússia e China estão se tornando aliados em função de objetivos políticos compartilhados, como os de reagir às pressões ocidentais, reestruturar as cadeias globais de valor e desenvolver um mundo multipolar em beneficio próprio.
Essas as perspectivas globais para 2019. Nesse contexto de grandes transformações e complexidades, “lembremos da Pátria”. Como se situará o Brasil? As poucas e genéricas sinalizações teóricas e de ação diplomática feitas até agora não permitem identificar como nós, uma das dez maiores economias do mundo, poderemos “ser mais Brasil e menos ordem global”. Essa discussão ainda não foi feita de forma clara. O governo Bolsonaro tem de “falar ao povo brasileiro”, como gosta de lembrar o ministro Ernesto Araújo, sobre as diretrizes, as prioridades e as competências do Itamaraty (em particular, no tocante à negociação comercial) que nortearão a política externa, em resposta aos desafios externos e na defesa do interesse nacional, livre de ideologias, partidos ou grupos.
*Rubens Barbosa é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)
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