terça-feira, 8 de janeiro de 2019

*Luiz Gonzaga Belluzzo: Semana de desencontros

- Valor Econômico

Fusões e aquisições são o grande negócio da concorrência patrimonialista e anti-competitiva

Na primeira martelada para demolir o que resta da imaginária socialdemocracia brasileira, o presidente Bolsonaro acenou com a redução da alíquota de 27,5% que incide sobre as faixas mais elevadas de rendimentos.

O açodamento do presidente foi dissolvido na entrevista do ministro da Casa Civil, Onix Lorenzoni. O governo Bolsonaro reproduziu as hesitações de Dadá Maravilha às portas do gol perdido: "Fiz que fui, mas não fui. Acabei não fondo".

No torneio "globalista" de alíquotas incidentes sobre as faixas de renda mais elevadas, o Brasil ocupa desonrosa posição, atrás de muitos países submergentes.

Conforme revela estudo recente da Receita Federal, isso se reflete na baixa carga de impostos sobre renda, lucro e ganhos de capital.

A pretensão do presidente Bolsonaro é inspirada na Curva de Laffer. Produzida nas retortas da "economia da oferta", outrora abrigadas nos laboratórios de Ronald Reagan e Margareth Thatcher, a Curva de Laffer buscava demonstrar que a sobrecarga de impostos sufocava os mais ricos e desestimulava a poupança. Esse desestímulo comprometia a disposição dos enriquecidos ao investimento e, portanto, reduzia a oferta de empregos e os rendimentos dos mais pobres. O encolhimento dos investimentos, do emprego e da renda promoveriam inexoravelmente a queda da receita fiscal.

Frederick Hayek, um dos patronos de Paulo Guedes, investiu sistematicamente contra as políticas que pretendiam corrigir as desigualdades mediante um sistema tributário progressivo. As intervenções do Estado são nefastas, dizia Hayek, pois só o processo de mercado torna possível a inovação nos métodos de produção e de organização, a partir do continuado fluxo de informações que surge da interação entre os indivíduos livres. O importante nessa concepção é a ênfase na capacidade do mercado, livre de empecilhos, de mobilizar e fluidificar os recursos individuais.

Em The Road to Serfdom, Hayek exalta o empreendedor, o indivíduo independente "empenhado em definir e redefinir seu plano de vida, enquanto os trabalhadores cuidam, em grande medida, de se adaptar a uma situação dada. " Hayek considera a concorrência um método superior por ser o único método pelo qual nossas atividades podem gerar o novo e o inédito sem a intervenção coercitiva ou arbitrária da autoridade. A sociedade e a economia evoluem guiadas por um processo de seleção natural darwinista. Só sobrevivem os melhores e os mais aptos. O credo neoliberal pretende, como disse Michel Foucault, "introduzir a concorrência como princípio enformador da sociedade".

Na realidade real, o acirramento da concorrência nos espaços do globalismo fomentou o monopólio. As novas formas financeiras contribuíram para aumentar o poder das grandes corporações. O livro de James Glattfelder, Decoding Complexity - Uncovering Patterns in Economic Networks, desvela a concomitância entre a constituição das cadeias globais de valor e a centralização do controle da produção e da riqueza em poucas grandes empresas e instituições da finança "mundializada".

As fusões e aquisições, aí incluídas as privatizações, tornam-se o grande negócio da concorrência patrimonialista e anti-competitiva. O maior controle dos mercados afetou negativamente os investimentos em nova capacidade e promoveu investidas contra os direitos sociais e econômicos, considerados um obstáculo à operação das leis de concorrência. Como diz o presidente Bolsonaro, o excesso de direitos prejudica os empresários.

A integração entre os centros financeiros da economia globalista comandou a deslocalização produtiva para os países que ofereciam relações produtividade/salários mais vantajosas. Esse movimento competitivo levou à exasperação os desencontros entre a estratégia da grande empresa e os espaços jurídicopolíticos nacionais. Os "territórios" nacionais, onde vivem e convivem homens e mulheres de carne e osso, foram desintegrados pela integração das cadeias globais de valor sob o comando dos fluxos de capitais empenhados na rivalidade patrimonialista e rentista. Uma coisa é uma coisa e a outra coisa é a mesma coisa. Um enigma para ser decifrado pelas divindades do chanceler Ernesto Araújo.

No embornal dos otimistas tecnológicos brilham as preciosidades da microeletrônica, da informática, a automação dos processos industriais, etc. Essas joias da inventividade humana prometem libertar os indivíduos das limitações impostas pelo espaço e pelo tempo. O avanço tecnológico estaria realizando as promessas de redução do tempo de trabalho e da libertação dos cidadãos do enclausuramento nas fábricas e nos escritórios.

No entanto, essas promessas foram capturadas pelas formas de operação das grandes corporações, protagonistas e vítimas das normas implacáveis da concorrência monopolista. As grandes empresas tornaram-se líquidas, credoras, subordinando seu desempenho econômico à "extração de valor" na esfera patrimonial e financeira. Aliados aos administradores, agora remunerados com bônus generosos e comprometidos com o exercício de opções de compra das ações da empresa, os acionistas exercitam as regras da concorrência exigindo surtos intensos e recorrentes de reengenharia administrativa, de flexibilização das relações de trabalho e de redução de custos.

Os efeitos do acirramento da concorrência entre empresas e trabalhadores são inequívocos: foram revertidas as tendências à maior igualdade observadas no período que vai do final da Segunda Guerra Mundial até meados dos anos 70 - tanto no interior das classes sociais quanto entre elas.

Na era do capitalismo patrimonialista e financeirizado, os frutos do crescimento concentraram-se nas mãos dos detentores de carteiras de títulos que representam direitos à apropriação da renda e da riqueza.

Para os demais, perduram a ameaça do desemprego, a crescente insegurança e precariedade das novas ocupações, a exclusão social.


*Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp

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