- Folha de S. Paulo
O foco na ideologia é um jeito de manter e expandir o próprio poder
Quanto mais o discurso do governo Bolsonaro combate a “ideologia”, mais fica evidente seu caráter ideológico.
Primeiro, uma ponderação: não existe posicionamento ou ato político que não seja, em alguma medida, ideológico.
Em tudo que fazemos há pressupostos que não são fruto do uso livre e imparcial da razão: há valores, há uma concepção de como o mundo deveria ser, há apego a certas explicações da realidade, há a preferência por certos grupos de pessoas.
Nenhum homem jamais será uma máquina de razão pura; e ainda bem, pois se fosse não sairia do lugar.
Mas há diversos graus de ideologia.
Uma coisa é se guiar por algumas crenças, mas ser capaz de corrigi-las se a evidência contrária se acumular; comunicar suas ideias e propostas com serenidade e objetividade, facilitando a discussão racional; ouvir e aprender com o contraditório; ter consciência de que ninguém está totalmente certo sobre tudo; reconhecer o conhecimento e a capacidade técnica que existem em pessoas com pensamento contrário.
Outra, bem diferente, é apostar no discurso sempre enfático e maniqueísta, estimular as paixões das massas, nomear apenas correligionários independentemente de seu mérito técnico ou profissional e expulsar todos os que não fazem parte da panelinha. Isso é ser ideológico.
O foco na ideologia é um jeito de manter e expandir o próprio poder enquanto se reproduz as mesmas exatas práticas de quem se acusa.
Na leitura ideológica de direita, apenas o PT aparelhava o Estado.
Quando o governo Bolsonaro faz a mesma coisa, está limpando o Estado.
Direitos humanos, relações exteriores e educação formam o núcleo ideológico do governo; uma mistura de reacionarismo de Olavo de Carvalho e da direita evangélica.
Até agora, têm levado a melhor inclusive sobre críticos internos ao próprio governo, como a ala militar, que não se encanta pelos discurso sebastianista e estranhamente submisso ao governo Trump do atual chanceler Ernesto Araújo.
O Ministério da Educação, que deveria estar no centro de prioridades de qualquer líder preocupado com o Brasil, foi entregue a um intelectual de direita (Ricardo Vélez Rodríguez) sem qualquer experiência de gestão e sem a menor ideia dos entraves do ensino público brasileiro e como resolvê-los.
Pelo contrário, traz uma agenda de combate ao marxismo cultural, globalismo e “ideologia de gênero”.
É verdade que não existe conhecimento ou ação totalmente desprovidos de ideologia; mas não dava para escolher pessoas com um pouquinho mais de capacidade técnica e que não vivessem no mundo da lua?
O governo Bolsonaro é pretensamente conservador, mas na verdade está mais para revolucionário, ou o que é o sentimento revolucionário voltado para o passado, reacionário.
A panelinha de correligionários é detentora da verdade e com ela vai redimir a nação.
Quem se colocar contra, está do lado do mal.
Comprando a narrativa falsa de que antes de seu governo vigoraram apenas as trevas (“socialismo”, globalismo, corrupção e outros males), sustenta a fantasia de que vivemos uma nova era, que existe apenas dentro da cabeça de quem ainda está maravilhado com a retórica do presidente e de alguns de seus asseclas.
Se não deixar a ideologia de lado um pouco para de fato resolver problemas do Brasil, será só uma questão de tempo até que a dura realidade desbanque o conto de fadas.
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