sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Fernando Abrucio* – O futuro do país corre o risco

- Eu &Fim de Semana | Valor Econômico

O melhor presidente em 2022 será aquele capaz de olhar para frente, algo que Bolsonaro se recusa a fazer, embora esteja criando piores perspectivas institucionais, na educação, cultura e meio ambiente

Ninguém pode dizer que Jair Bolsonaro é incapaz de criar fatos. Desde que começou seu governo, ele já falou dos mais diversos e inusitados assuntos, mexeu em políticas públicas e instituições até então estáveis, brigou com atores políticos nacionais e internacionais, em suma, o presidente dá a impressão que está fazendo uma enorme transformação. Enquanto isso, a mídia e os analistas procuram saber como o povo está reagindo a esta tempestade. Mas talvez seja importante ir além do dia a dia e perguntar: de que maneira Bolsonaro trata o futuro do país?

O debate político tem se concentrado principalmente nas consequências imediatas dos atos e palavras do presidente. É evidente que a discussão sobre a conjuntura é importante. O entendimento do país passa pelo acompanhamento de temas como o andamento da reforma da Previdência, a escolha do novo procurador-geral da República, a indicação do filho do presidente - o zero três - para a embaixada brasileira nos Estados Unidos ou a briga com o presidente Macron.

Só que uma boa análise política é aquela capaz de fazer a ponte entre o presente e o futuro. No campo do embate político, obviamente que Bolsonaro já está pensando em sua reeleição. Suas pancadas em Doria e Huck, num tom que só era usado contra o PT, revela que o presidente pretende queimar todas as candidaturas que venham do centro ou da centro-direita. Quer continuar como o paladino antipetista que permitiu sua eleição em 2018, mantendo a polarização como a lógica do sistema político.

Mas a leitura das tendências futuras da competição política deve ir além de nomes e brigas. O que será a agenda da reeleição de Bolsonaro? O que pretendem trazer de novo os candidatos que lutam para reorganizar o centro? E as esquerdas, que programas irão apresentar no cenário do pós-lulismo?

Sabe-se pouco ainda sobre os projetos e ideias para 2022. No entanto, já é possível analisar os possíveis efeitos das políticas públicas de Bolsonaro para o futuro do país. No plano econômico, seu governo é, em boa medida, continuidade da gestão de Temer na Presidência, tendo como foco principal o ajuste fiscal e a reforma da Previdência, uma medida necessária para que nossos filhos e netos tenham esse benefício.

Não há, contudo, uma agenda clara para recuperar o crescimento da economia. Muitas ideias aparecem, projetos são propostos, outros são cancelados ou desmentidos, e, ao final, ainda há muitas dúvidas sobre o que o bolsonarismo pretende fazer para mudar o estágio de estagnação econômica que tomou conta do Brasil desde a era Dilma. A ideia da carteira verde e amarela, bem como outras medidas de reformulação trabalhista, não apresentam com clareza qual será a fórmula para retirar mais de 11 milhões de pessoas do desemprego, afora a enorme massa de trabalhadores informais.

É muito cedo ainda para prever os caminhos econômicos do país nos próximos quatro anos. A recuperação tem sido lenta e difícil e a aposta ultraliberal do governo é uma incógnita, pois nunca foi testada na nossa história recente. Duas possibilidades se colocam na disputa ideológica. De um lado, os que acreditam que o aumento da liberdade econômica das empresas e a redução da intervenção estatal vão gerar um novo ciclo de prosperidade. De outro, perfilam-se aqueles cuja visão é a de que Bolsonaro tem como projeto a criação de um modelo econômico selvagem, num estilo "Mad Max". Provavelmente a verdade está em algum ponto entre essas duas visões, embora não se saiba em que ponto entre ambos ficaremos.

Maior certeza há sobre os efeitos de outras políticas bolsonaristas para o futuro do país. O seu projeto para a educação tem significado um atraso em uma série de reformas que vem sendo defendidas pelos especialistas da área nos últimos anos. Em lugar de acelerar mudanças na formação docente, na utilização dos instrumentos pedagógicos ou na cooperação federativa, o governo tem apoiado propostas que não se baseiam em evidências científicas ou em casos bem-sucedidos pelo mundo ou mesmo no Brasil. Pior do que isso, tem reduzido os recursos do setor sem apresentar medidas que aumentem efetivamente a eficiência e a qualidade do gasto educacional.

Quando se erra feio na educação, o custo para o futuro de um país é igual ou maior do que as grandes crises econômicas. Mesmo tendo ainda uma série de defeitos, a política educacional brasileira passou por uma verdadeira revolução nos últimos trinta anos em termos de expansão da rede, inclusão dos alunos e organização do sistema escolar. Recuperou-se mais de um século perdido de descaso das elites com o ensino, pois o antigo modelo de desenvolvimento, mesmo quando gerou aumento da riqueza, não o fez por meio da ampliação qualificada do ensino para todos.

Tendo esse diagnóstico como base, o que propõe a ministra Damares? Ela orientou que Conselhos Tutelares deixem de registrar como abandono escolar casos que podem ser caracterizados como "homeschooling". Esse é o primeiro passo para restringir o acesso ao ensino pelos mais pobres e perpetuar a ignorância. A consequência disso é que milhões de pessoas não terão qualificação para conseguir empregos, gerando um circulo vicioso de baixa produtividade e aumento da desigualdade.

O caminho para o abismo no futuro passa também pela visão anticientífica que alimenta o governo Bolsonaro. Por diversas vezes os dados e as evidências científicas foram ignorados em nome de um senso comum lastreado na ignorância de quem não entende do assunto. Essa postura obscurantista foi além do discurso: o enorme corte nos gastos com ciência e tecnologia irá cobrar um enorme preço ao longo dos próximos anos.

O Brasil tinha conseguido, após aumento do investimento e, sobretudo, muito esforço dos pesquisadores, entrar no primeiro time da produção científica mundial. O que está ocorrendo agora é um rápido desmonte dessa engrenagem bem-sucedida. Se continuarmos nesta toada, o país perderá todo o dinheiro investido por mais de uma década em talentosos cientistas. Haverá uma fuga de cérebros para o exterior e ficaremos com uma menor quantidade de capital humano no país. Em outras palavras, a política científica de Bolsonaro está semeando a perda do dinamismo do desenvolvimento no futuro.

Um futuro sombrio também nos espera mais adiante caso seja mantida a atual política ambiental. Ela ignora os dados científicos, baseia-se no enfraquecimento de órgãos e quadros técnicos e cria uma falsa dicotomia entre preservação e desenvolvimento. Mais do que isso, esse modelo bolsonarista está alimentando uma enorme crise ambiental na região amazônica. Em vez de ficar brigando com ONGs e governantes estrangeiros, o presidente deve buscar cooperação internacional para reafirmar nossa soberania.

Mas soberania para quê? Em última análise, nossa independência depende da capacidade de garantir um mundo melhor para nossos filhos e netos. E isso só será possível caso consigamos explorar de forma racional e sustentável os recursos naturais brasileiros, principalmente os da floresta amazônica. Propor o uso imediato do subsolo da região para obter minérios a qualquer custo, inclusive colocando em risco a vida dos indígenas, nos levará à perda de poder político no plano internacional, ao boicote de nossos produtos e à destruição da biodiversidade, algo muito mais importante do que exportar ferro para os outros se desenvolverem.

Outro legado negativo que o bolsonarismo está deixando para o nosso futuro é o do enfraquecimento da estabilidade institucional. Um bom exemplo disso é a bagunça criada em várias agências reguladoras, o que logo gerará um aumento da insegurança jurídica para os investimentos. O interessante é que esse processo está ocorrendo nas barbas de uma equipe econômica que, em tese, defende ideias liberais. Ou será que o ultraliberalismo de Paulo Guedes prescinde de controles regulatórios sobre a atividade econômica?

Os exemplos aqui expostos estão semeando um futuro pior para o país, embora não necessariamente sejam percebidos como as questões mais importantes no debate político conjuntural. Fica a pergunta: por que Bolsonaro toma tantas decisões que colocam em risco a vida das próximas gerações? Há várias explicações para esse fenômeno, mas uma coisa chama a atenção: uma parcela das escolhas erradas do presidente se deve ao fato de que ele está mais preocupado com o passado do que com o futuro.

Jair Bolsonaro está sempre olhando para o passado: glorifica o regime militar, procura comunistas em todos os cantos, critica continuamente o PT para manter viva a polarização que alimenta seu poder político, expõe seus ódios contra vários comportamentos morais contemporâneos. Ele não está muito preocupado com o futuro porque quer manter todos no passado, onde se sente seguro e confortável.

O problema é que o Brasil só sairá da enorme crise instalada no país desde 2013 caso seja capaz de formular claramente um projeto de futuro. O melhor presidente em 2022 seria aquele capaz de olhar para frente, algo que Bolsonaro se recusa a fazer, embora seus atos estejam criando perspectivas piores para nossos filhos e netos nos campos da educação, cultura, meio ambiente e instituições democráticas.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e chefe do Departamento de Administração Pública da FGV-SP,

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