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O efeito devastador da pequenez do seu protagonista, nos gestos, nos discursos, nas ações, começou a mostrá-lo como o que é: aquém, incapaz e impatriota, redutivo e alienado
As eleições de 2018 confirmaram a vitória do poder pequeno, o que começou a ficar visível com as denúncias do mensalão, em 2004. O poder pequeno vem robustecendo-se e apoderando-se lentamente do poder do Estado nos últimos quase 20 anos. Uma novidade silenciosa, que nos torna politicamente ínfimos. Com ele, abriu-se o caminho para a ascensão política e a tomada do poder pelo pequeno homem do poder pequeno.
O pequeno protagonista do poder pequeno revela-se em sua notória incapacidade de usar as vestes apertadas do grande poder, o da pluralidade e da diversidade do que é consagrado pela Constituição. O pequeno homem do poder pequeno é o que briga todo o tempo com o poder do Estado porque pretende ajustá-lo à sua pequenez. Não sabe lidar com o tamanho próprio das instituições políticas e com os poderes da República, não os compreende.
Gente originária dos redutos do poder pequeno, que são os quartéis, as igrejas, os movimentos sociais, os grupos de pressão, os lobistas, as variantes do que o canadense Erving Goffmann definiu como instituições totais. As que respondem pela ressocialização redutiva e minimizante dos sujeitos, não raro com o explícito intuito de fazê-los instrumentos da sujeição do Estado às concepções e aos ditames do poder que representam. É o que estamos vivendo no Brasil neste momento: o triunfo do poder pequeno.
Esse poder começou a se constituir e a ter alguma eficácia nas contradições do regime militar de 1964. Com o enquadramento da limitada ação política no bipartidarismo: um partido do Brasil da ditadura contraposto a um partido residual do Brasil da democracia, que reunia até mesmo grupos populistas e fisiológicos, democráticos apenas por oposição.
O verdadeiro e invisível partido antiditatorial teve a existência e o perfil identificados e apontados, em 1980, pelo general Golbery do Couto e Silva, intelectual do regime, em conferência na Escola Superior de Guerra, no mesmo dia da primeira visita do papa João Paulo II ao Brasil. Justificou ele aos oficiais ali presentes as razões da abertura política gradual.
Reprimidos os partidos, a sociedade criara seus canais de expressão e contestação nos grupos e movimentos sociais antagônicos ao regime e no deslocamento da militância política para o abrigo de igrejas. Referia-se ele à conversão das demandas sociais em demandas políticas, sobretudo pela Igreja Católica. A abertura devolveria a política ao seu leito natural e anularia a função partidária que a igreja passara a desempenhar.
O general não explicou, e talvez nem soubesse, que já era tarde demais para essa providência. O regime derretera os partidos e propiciara uma espontânea ressocialização política da população, reduzida ao que estou aqui definindo como política do poder pequeno. Nos grupos e movimentos que proliferaram naquele período, tornou-se agente subterrâneo da política o pequeno homem, ou seja, a pessoa cujos horizontes eram o da vida comum, das necessidades e concepções da vida cotidiana, não raro da cozinha, da roça, da fábrica e da moradia. Aquelas para quem o controle do próprio fogão doméstico já era um poder. A vida cotidiana começava a revelar a força social e política de suas ocultações.
A grande política se tornava pequena. Tudo muito aquém dos marcos políticos da cultura erudita. Uma concepção abstrata de pobreza e da cultura popular tornou-se referência dessa redutiva reorientação da política brasileira. Tornamo-nos pobres de espírito, dotados de uma alienação peculiar, a do grande poder concebido na perspectiva do poder pequeno.
Com o discurso sobre o pobre veio uma compreensível ideologia do ressentimento contra as adversidades decorrentes da falta de liberdade política, que se estendeu ao questionamento da própria história brasileira. Como se viu nas manifestações contra as comemorações do quinto centenário do Brasil, na Bahia, em 2000. O passado vazio como idade de ouro de referência para compreensão e expressão de um generalizado sentimento de perda. Não o possível, o concreto amanhã prenunciado nas contradições de hoje.
Enquanto o pequeno poder esteve oculto nas dobras da sociedade, tudo parecia bem. Mas o efeito devastador de sua pequenez, nos gestos, nos discursos, nas ações, começou a mostrá-lo como o que é, aquém, incapaz e impatriota, redutivo e alienador. O pequeno poder do homem pequeno é o das "fake news", dos fake políticos, dos fake filósofos do poder. A autenticidade relativa do poder pequeno dos tempos iniciais metamorfoseou-se no inautêntico de homens pequenos de agora porque são um tanto vazios dos atributos de que carecem aqueles aos quais toca governar um país da importância histórica do nosso.
*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, autor de “Fronteira - A Degradação do Outro nos Confins do Humano” (Contexto).
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