Um governante sem freios
Se nem ao povo que o elegeu o presidente Jair Bolsonaro deve lealdade cega, como ele mesmo disse ontem, a quem de fato deve? Às suas escassas e controversas ideias a respeito de como governar bem? Aos que o cercam? Ou somente àqueles que o cercam sempre dispostos a concordarem com ele em tudo e por tudo?
A escolha do novo Procurador-Geral da República foi mal recebida até por uma parcela dos devotos fanáticos de Bolsonaro – algo como 12% que o apoiam incondicionalmente, segundo o Datafolha. Augusto Arias, o escolhido, foi acusado de ser petista, ou de ter sido porque reuniu petistas para uma festa há muitos anos.
Bolsonaro replicou com a ameaça de mandar apagar os comentários contra Arias em suas páginas nas redes sociais. Nelas só serão acolhidos comentários elogiosos ao seu dono e ao que ele faça. Vão brincar de expressar livremente suas opiniões nas páginas dos outros, na do capitão, não. Ali, ele cobra acatamento.
Pouco se lhe dá que a escolha de Arias tenha sido rejeitada pela maioria dos nomes de peso entre os procuradores da República que se recusam a trabalhar com ele – ou que dizem que se recusarão, a conferir mais adiante. Bolsonaro fez o que prometeu: optou por um nome que julga 100% alinhado com seus propósitos.
Tais propósitos resumem-se num só: fazer o que ele mandar. Se ele quiser que determinados processos sejam arquivados, serão. Se quiser que outros sejam abertos para embaraçar seus adversários, serão também. Não precisa que Arias seja “terrivelmente evangélico”. Basta que seja “terrivelmente obediente”.
O mesmo critério será aplicado à escolha do novo diretor-geral da Polícia Federal – obediência acima de tudo, só abaixo de Deus, e olhe lá. A Pátria corre riscos. O mundo quer tomar a Amazônia. Os terroristas estabelecidos na região da tríplice fronteira podem aprontar um atentado a qualquer momento. E a família…
Pois é. No caso, a nova família imperial brasileira formada por Bolsonaro, seus filhos e agregados terá de ser protegida. O mal costuma assumir várias formas. As milícias, por exemplo, nem sempre foram uma das faces do mal. Serviram para defender a população dos traficantes de drogas, segundo Bolsonaro.
Mas os inimigos do presidente, dos seus filhos e agregados querem ligá-los às milícias pelo lado mal das milícias, não pelo lado bom ou tolerável. Daí a necessidade da proteção reclamada por Bolsonaro. Sérgio Moro já não lhe inspira tanta confiança. Melhor pôr um homem de sua confiança no comando da Polícia Federal.
Isso significa desrespeito à autonomia que sempre desfrutaram a Procuradoria-Geral da República e a Polícia Federal? Claro que sim, mas Bolsonaro está pouco se lixando. O Procurador-Geral da República dos governos do presidente Fernando Henrique Cardoso foi na prática um engavetador de processos. Esqueceram?
Bolsonaro continuará testando todos os limites oferecidos pela lei e pelos costumes com o objetivo de alargá-los ao seu gosto, ou, se for o caso, rompê-los. Assim será até o último dos seus dias na presidência. Resta aos que se preocupam com a democracia impedir que ela se deteriore a um ponto de não retorno.
Uma fenda no Titanic
Todo cuidado é pouco
Sobre decisões bizarras ou apenas controversas do Supremo Tribunal Federal, diz-se que produzem insegurança jurídica. E sobre decisões que o presidente Bolsonaro toma e depois recua? Ou declarações que faz e depois nega? Elas produzem o quê?
Nas últimas 48 horas, Bolsonaro investiu contra a lei do teto de gastos aprovada pelo Congresso ainda ao tempo do presidente Michel Temer. Segundo ele, seria uma questão simplesmente “matemática” – se as despesas crescem, o teto tem de aumentar.
Foi um Deus nos acuda dentro da área econômica do governo e entre os agentes do mercado financeiro. Embora esteja rouco de repetir que não entende patavinas de economia, Bolsonaro é o presidente. O que ele diz merece ser escutado e levado em conta.
Depois de uma conversa com o ministro Paulo Guedes, antes de Guedes voar a Fortaleza para dizer que a mulher do presidente francês é mesmo feia, Bolsonaro voltou atrás. Desrespeitar a lei do teto de gastos “seria abrir uma fenda no Titanic”, ele explicou.
É razoável supor que Bolsonaro tenha comparado o Brasil ao transatlântico Titanic – ambos de gigantescas dimensões. Não foi uma comparação feliz porque o Titanic afundou na sua viagem inaugural. Das 2.200 pessoas a bordo, apenas 705 sobreviveram.
Mas Bolsonaro não é obrigado a ter assistido ao filme a respeito do desastre (ele gosta de filmes de guerra e de desenho animado). Nem é obrigado a pelo menos consultar o Google antes de fazer considerações sobre o que desconhece.
Como desconhece quase tudo e tem por hábito dizer, negar, reafirmar o que disse para em seguida negar ou manter adiante, Bolsonaro acaba produzindo (agora, sim) insegurança governamental. Fora seus devotos, quem pode confiar nele?
Toda atenção, portanto, é pouca com essa história de revogar ou não a lei do teto de gastos. Bolsonaro elegeu-se prometendo quebrar o sistema. Somente ele sabe a extensão do estrago que gostaria de promover.
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