O avanço do nacionalismo
Guerras tecnológicas, políticas nacionalistas e pouca coordenação global devem ser a marca das próximas décadas
Por Diego Viana | Eu & Fim de Semana / Valor Econômico
SÃO PAULO - Após 30 anos de um consenso liberal que surfou na onda da globalização, o mundo está entrando em nova fase: guerras tecnológicas, políticas nacionalistas e pouca coordenação global devem ser a marca das próximas décadas. O período de acelerada globalização, entre a queda do Muro de Berlim, em 1989, e a crise financeira de 2008, foi uma exceção histórica, segundo a economista Monica Baumgarten de Bolle, pesquisadora-sênior do Instituto Peterson de Economia Internacional (Piie). O nacionalismo econômico de líderes como Donald Trump não são um acaso ou um momento passageiro, mas o primeiro passo na direção de uma outra fase da economia global.
“Está se formando uma ‘cortina de ferro tecnológica’”, afirma o cientista político Oliver Stuenkel, coordenador da pós-graduação em relações internacionais da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo. Para Stuenkel, são duas as causas: ascensão da China como superpotência global e mudança na relação entre desenvolvimento técnico e integração regional. “O avanço das tecnologias, que costumava integrar mais os países, passa a produzir esferas de influência tecnológica”, afirma. “Para mim, essa é a maior ameaça ao livre-comércio.”
A tendência vai além da tecnologia, porém. Nesta semana, o Brasil sentiu na pele o pendor nacionalista de Trump, mas num setor tradicional: a siderurgia. O presidente americano acusou o país, e também a Argentina, de desvalorizar artificialmente suas moedas, e ameaçou reativar taxas de importação de aço e alumínio. Trata-se de taxas anunciadas para o mundo todo no ano passado, de 25% e 10% respectivamente, mas das quais os dois países sul-americanos tinham ficado isentos.
No mesmo dia, Trump ameaçou taxar produtos franceses em até 100%, em retaliação a um imposto sobre transações digitais. Desde 2017, o presidente americano também acusa a China de manipular sua moeda, o renminbi, reativando o tema das “guerras cambiais”, que era assunto em 2011, quando o então ministro da Fazenda brasileiro, Guido Mantega, dizia que a moeda artificialmente desvalorizada era o próprio dólar.
“A antítese do liberalismo não é o socialismo, como muita gente pensa, mas o nacionalismo”, afirma Monica. Em parceria com Jeromin Zettelmeyer, seu colega no Piie, a economista mediu o quanto as mensagens dos partidos políticos ao redor do mundo, à direita e à esquerda, estão se afastando do consenso liberal das últimas décadas. A dupla concluiu que é justamente essa antítese que está se expandindo.
“Ouvindo as propostas de Trump e depois de outros partidos populistas, aquilo nos pareceu familiar: lembra a tradição nacionalista e protecionista da América Latina”, afirma Monica.
O anúncio de Trump reforçou a demanda da indústria siderúrgica europeia para a Europa também aumentar barreiras à entrada do produto brasileiro. A Eurofer, associação dos produtores siderúrgicos da Europa, disse temer que o aço que o Brasil e a Argentina não puderem mais exportar para o mercado americano acabe desviado para a Europa, fragilizando ainda mais a já combalida indústria europeia.
A pesquisa do Piie, que analisou as plataformas de partidos políticos com mais de 10% dos votos nos países do G20 (grupo formado pelas 19 maiores economias do mundo mais a União Europeia), antes e depois da crise de 2008, faz mais do que apontar a presença do populismo: mostra também que os partidos tradicionais do centro estão se tornando mais favoráveis a medidas de controle do comércio exterior ou de desenvolvimento macroeconômico nacional.
Em quase todos os critérios da pesquisa, as sociedades se tornaram mais protecionistas, nacionalistas e economicamente populistas. O resultado foi obtido ponderando os programas dos partidos com os votos que eles obtiveram em eleições, segundo tópicos como política industrial, recepção de imigrantes e recebimento de investimento estrangeiro. Siglas consideradas populistas, que costumavam ter uma posição econômica mais liberal, embora fossem anti-imigração, caminharam na direção de maior proteção comercial e adotaram propostas de política industrial. Ao mesmo tempo, partidos considerados não populistas passaram a adotar propostas mais hostis aos imigrantes, ao menos no mundo desenvolvido.
O fenômeno vale tanto para países ricos quanto para emergentes. As diferenças entre os dois grupos não são tão expressivas como se poderia esperar: em ambos, o gosto por tratados multilaterais de livre-comércio e instituições de governança global diminuiu acentuadamente. A principal diferença é que, no mundo desenvolvido, os partidos aumentaram a aposta em medidas de controle da imigração, enquanto nos países em desenvolvimento as promessas dos políticos evocam mais medidas de proteção à indústria local.
“As esferas de influência tecnológica vão ser o maior desafio para a política externa dos demais países, particularmente os emergentes”, afirma Stuenkel. “Uma coisa que me preocupa é que poucos países vão liderar o processo de avanço em áreas como inteligência artificial. Vão dominar essas indústrias. A corrida para controlar essas tecnologias vai criar muita desigualdade, porque os países em desenvolvimento tendem a não conseguir acompanhar o processo, o que vai aumentar a situação de dependência.”
No caso do Brasil, uma política de não alinhamento, como o país manteve durante boa parte da Guerra Fria, seria ideal, diz Stuenkel. Mas não seria fácil.
“A cortina de ferro tecnológica vai ser muito mais difícil de superar do que a cortina de ferro ideológica”, afirma. Mesmo no auge da Guerra Fria, os EUA colaboraram com países do bloco comunista, quando houve interesses em comum. “Mas se a disputa é pela dominância tecnológica e comercial, a situação é mais complicada: ou um país usa certa tecnologia ou não usa.”
Stuenkel sugere que, se não quer ficar para trás, o Brasil deve ter um “plano de investimento estratégico possante”, com adaptação da legislação que torne o ambiente econômico atraente para empresas de tecnologia e a formação de “uma nova elite, que seja competitiva no mundo da indústria 4.0”. Para as redes 5G, um bom passo seria conseguir que o país fornecedor se disponha a arcar com os custos de instalação da rede, algo que a China parece inclinada a fazer.
“Se a China tem uma empresa como a Huawei, que domina a tecnologia 5G, e os Estados Unidos não têm nada parecido, a ideia é que isto é por falta de uma política econômica nacional”, diz Stuenkel.
Mesmo nesse campo, encontra-se indício da passagem do consenso liberal à nova fase do nacionalismo econômico. “É um debate estratégico de longo prazo, que deveria acontecer nos ministérios e seria um ótimo tema para discutir em cúpulas anuais de dirigentes da América Latina, o que hoje, obviamente, não é viável, já que a mentalidade ainda está nas divisões da Guerra Fria, e não na guerra tecnológica”, diz.
Historicamente, a emergência do consenso liberal, a partir dos anos 80, foi um processo chefiado pelas potências ocidentais, na descrição do cientista político alemão Michael Zürn, autor de “Uma Teoria da Governança Global” e diretor do Centro de Pesquisa em Ciências Sociais de Berlim. Já nessa década, os acordos comerciais, ainda essencialmente tarifários, começaram a se tornar mais amplos, abrangendo mais áreas. A partir daí, os tratados começaram a intervir também nas políticas econômicas nacionais, “vistas como estratégias de proteção aos mercados domésticos”, afirma.
“O consenso liberal incentivou a evolução desses acordos, em processo que se intensificou com a evolução tecnológica, à medida que as fronteiras nacionais se tornaram menos relevantes e mais incômodas”, diz Zürn. “A globalização se intensificou a partir daí. Quando a União Soviética, pressionada e tentando responder com uma abertura controlada, entrou em colapso, os EUA e potências ocidentais viram a oportunidade de estabelecer um mundo realmente baseado no consenso liberal.”
Zürn aponta que, no geral, as instituições que organizam o mundo globalizado são as mesmas que surgiram ao fim da Segunda Guerra: Organização das Nações Unidas (ONU), Fundo Monetário Internacional (FMI), Banco Mundial. A essas se somam instituições regionais, das quais a mais conhecida é a União Europeia (UE), que começou como mera união aduaneira. As atribuições dessas entidades se expandiram ao longo do tempo, tornando-se os alicerces da ordem global e promotoras do consenso liberal.
Monica e Zettelmeyer sublinham a importância da crise de 2008, conhecida como Grande Crise Financeira, como catalisadora da mudança nos programas dos partidos. “As mensagens de centro-direita e centro-esquerda ficaram pouco atraentes para os eleitores depois da crise”, diz Monica.
“Quando as mensagens mais extremadas começam a crescer no gosto da população, isso sempre inclui uma dose de nacionalismo econômico.”
Nos partidos já existentes, as siglas identificadas com a esquerda foram mais afetadas: sua reorientação para o nacionalismo econômico a partir de 2008 é mais radical do que a dos partidos considerados à direita.
Essa guinada reverte o processo que colocou os tradicionais partidos da esquerda, sobretudo na Europa, no coração do consenso liberal, ao longo da década de 90. Esse foi o momento da chamada Terceira Via, a era de Tony Blair (primeiro-ministro britânico de 1997 a 2007), Bill Clinton (presidente dos EUA entre 1993 e 2001) e o brasileiro Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Sob esse nome, a partir de um termo cunhado pelo sociólogo britânico Anthony Giddens, partidos de esquerda ao redor do mundo adotaram plataformas de defesa do livre-comércio e desregulação financeira, mas com maior preocupação social.
Essas são as agremiações que levaram o maior golpe após a crise financeira. A ala do partido Trabalhista britânico ligada a Tony Blair foi derrotada pelos seguidores mais radicais de Jeremy Corbyn. Na França, o presidente socialista François Hollande foi tão impopular que nem chegou a concorrer à reeleição. Na Alemanha, o tradicional Partido Social-Democrata (SPD) compõe o governo com seu antigo rival, os democrata-cristãos (CDU), mas vem tendo votações cada vez menores, ano após ano.
Algum movimento na direção de maior nacionalismo econômico e protecionismo é algo que se pode esperar após grave crise econômica. O exemplo clássico é a década de 30, em que a Grande Depressão levou os governos nacionais a enxergar o comércio e a finança internacionais não mais como uma arena de cooperação entre povos e países, mas como um espaço de disputa e rivalidade. Desvalorizações cambiais, barreiras tarifárias e outras medidas, que visavam à proteção da indústria doméstica e de empregos locais, deram o tom do período. Também foi o momento de ascensão de políticos populistas e nacionalistas, que resultou na Segunda Guerra.
Em 2015, os cientistas políticos alemães Manuel Funke, Moritz Schularick e Christoph Trebesch publicaram um artigo demonstrando que esse não foi um caso isolado. Examinando eleições ao longo de 140 anos (entre 1870 e 2014), os autores apontam que cada período de crise financeira é seguido de um aumento da incerteza política e da fragmentação partidária. Este é o solo em que se assenta o crescimento das políticas nacionalistas e das lideranças populistas. “Na média, partidos da extrema-direita populista, que põem a culpa da crise em minorias e estrangeiros, aumentam sua votação em 30% depois de crises financeiras”, escrevem.
Para Stuenkel, a crise e a lenta retomada que se seguiu não são o fator preponderante, mas a ascensão da China como polo econômico, geopolítico e tecnológico. “A grande aposta dos EUA, ao fim da Guerra Fria, foi na capacidade de inserir a China no sistema global, o que deveria trazer uma liberalização política e econômica no país. Não foi assim que aconteceu”, diz.
O caso da Huawei é emblemático. A empresa domina uma tecnologia de ponta em telecomunicações: a 5G, fundamental para o desenvolvimento da internet das coisas. É a primeira vez que o avanço industrial chinês envereda por campos que os países do Ocidente não atingiram. Também é, segundo Stuenkel, o primeiro momento em que um país emerge no cenário econômico mundial de um jeito que os Estados Unidos não conseguem encontrar uma resposta, como foi quando o Japão parecia ameaçar a hegemonia americana, nos anos 80.
A reação dos tradicionais países desenvolvidos ao novo competidor transparece em detalhes contraintuitivos. Um deles é o item investimento direto estrangeiro, na pesquisa de Monica e Zettelmeyer. Nas economias mais ricas, as plataformas dos partidos apontam um aumento das restrições a esses investimentos. Mas quem restringiria o investimento produtivo?
“Em geral, essas restrições são a investimentos que de alguma maneira vêm da China”, afirma Monica. Na Europa, a principal preocupação é a perda da vantagem tecnológica, quando empresas de ponta são compradas por companhias chinesas. Nos EUA, soma-se a sensação de uma “perda da hegemonia americana no mundo”, diz a economista. “A questão é que o poder de influência dos chineses está cada vez maior, tomando o espaço do poder de influência dos americanos. Isso leva tanto os democratas quanto os republicanos a reagir.”
Um exemplo se encontra no projeto Estratégia Industrial Nacional 2030, que o ministro alemão da Economia, Peter Altmaier, anunciou em fevereiro. Um dos pontos do projeto é que o governo deverá intervir para evitar que empresas nacionais sejam compradas por companhias estrangeiras que sejam estatais ou “fortemente subsidiadas”.
De fato, o governo de Angela Merkel manifesta preocupação há anos com a possibilidade de perder para empresas chinesas a posição de ponta em maquinário industrial que a Alemanha possui. Em 2016, a fabricante de robôs Kuka foi comprada pela chinesa Midea. No ano passado, porém, o governo chinês, adiantando-se à promessa de intervenção de Berlim, impediu o grupo Yantai Taihai de comprar a fabricante de maquinário alemã Leifeld. A Leifeld produz equipamentos para indústrias nucleares.
“Essa estratégia alemã dificilmente vai ser bem-sucedida”, afirma Stuenkel. “Os alemães estão querendo vencer o jogo jogando como os chineses, mas estão muito em desvantagem.” Seria mais eficaz, para o cientista político, definir setores em que a Alemanha não vai cooperar com a China e, apenas para esses mercados, introduzir proteções.
Altmaier também tem defendido que a Europa desenvolva uma política conjunta para desenvolver a indústria, com um fundo para investir em novas tecnologias e a proteção do mercado continental. “Isso é muito surpreendente para um país que vive de exportação e depende de mercados abertos”, diz Stuenkel.
A versão final do documento foi apresentada no mês passado e ainda será analisada pelo governo da Alemanha, que poderá rejeitá-lo ou modificá-lo. Comentando as críticas que o projeto tem recebido, Altmaier chegou a dizer que a intenção era recolocar a indústria em seu lugar de direito: “Pela primeira vez em anos, o centro do debate político”. O ministro também disse que recebeu apoio de outros países da Europa.
Para conseguir jogar o jogo chinês com chance de vitória, seria necessário que a Europa estivesse em estágio de coordenação política que não existe. No caso das tecnologias 5G, Merkel deixou claro que não quer que o âmbito da decisão seja Bruxelas. Assim, são os parlamentos nacionais que vão escolher entre aceitar ou rejeitar a participação da Huawei.
A ascensão do nacionalismo econômico sugere que a globalização perdeu força e pode até mesmo estar refluindo. Desde 2008, a expansão do comércio internacional, que até então era duas vezes mais rápida do que a expansão da economia como um todo, arrefeceu, e não tem ultrapassado o ritmo do crescimento global. Desde o início de 2019, vem até mesmo recuando, em comparação com o ano passado.
O plebiscito do Brexit, em 2016, talvez tenha sido o primeiro grande sintoma de que o impulso globalizador se esgotava. Na ocasião, o diplomata chinês He Yafei, ex-vice-ministro de Relações Exteriores da China, se referiu à votação como “parte da primeira onda de desglobalização” e previu futuro “intenso e feroz, com forças pró e contra a globalização lutando batalhas acirradas em diversos campos”.
A ordem liberal, que emergiu na virada para a década de 90, já estava abalada desde 2001, afirma Zürn. Foi nesse ano que o ataque às Torres Gêmeas, nos EUA, demonstrou que haveria resistência ao avanço da ordem liberal; e também foi em 2001 que o economista britânico Jim O’Neill cunhou a expressão Brics para se referir a países emergentes com grandes territórios e tendência ao crescimento não só econômico, mas de influência global.
Ainda que se possa duvidar da coordenação efetiva entre Brasil, Rússia, China, Índia e África do Sul, o que O’Neill indicava, com o horizonte para 2050, era a perda relativa de influência e poder das potências ocidentais, Europa em particular. Significaria que os países em ascensão passariam a exigir mudanças nas regras da governança global, avançando seus interesses. Mas essas mudanças provocariam reações nos países estabelecidos, perante o risco de perder espaço.
Este é, de fato, o momento que o mundo atravessa hoje. As potências emergentes, China à frente, se ressentem do modelo de tomada de decisões dos organismos de governança global. As potências ocidentais têm pouco interesse em reformá-los. Certas lideranças, a começar por Trump, preferem se afastar e agir por conta própria. Zürn acrescenta que as antigas potências foram incapazes de se adaptar à emergência de novas potências, o que se reflete na crise das instituições de Bretton Woods e na criação de instituições paralelas, como o Banco de Investimento em Infraestrutura da Ásia e o Banco dos Brics. Mas a crise do consenso liberal conduz à pergunta: poderíamos, de fato, esperar que a transição ocorresse de maneira mais harmoniosa?
Stuenkel aponta tendência de que o comércio global esteja cada vez mais sujeito a tomadas de decisão geopolíticas. Esta é uma das maneiras como as esferas de influência tecnológica vão se manifestar. “Se, por exemplo, um país do tamanho do Brasil optar pela Huawei para a rede 5G, certamente os Estados Unidos vão reagir dificultando a entrada de produtos brasileiros em seu mercado”, diz. A interdependência entre comércio global e geopolítica vai necessariamente implicar a interferência política dos governos na circulação internacional de bens e serviços.
A comparação com a América Latina é esclarecedora por outros motivos. No ano passado, Trump implodiu o Nafta (Acordo de Livre-Comércio da América do Norte), e em seu lugar foi criado o USMCA (Acordo Estados Unidos-México-Canadá). “Não é um acordo de livre-comércio, mas um acordo de comércio administrado. Tem cotas de importação, restrições voluntárias de exportação, vários instrumentos de manejo do comércio que não estão em linha com o que se entende por livre-comércio", diz Monica. É um modelo mais próximo ao Mercosul.
Por outro lado, os países de governos mais liberais tampouco estão imunes à onda do nacionalismo econômico. A saída americana do TPP (Parceria Transpacífica), novamente por iniciativa de Trump, ensejou a criação de um substituto incluindo os demais membros do acordo abortado: trata-se do CPTPP (Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífica). “Mas esse acordo, depois da saída dos EUA, embora tenha mantido muito do que estava no TPP, reintroduziu várias barreiras ao comércio”, afirma a economista.
A nova fase geopolítica é um “nivelamento”, segundo o economista irlandês Michael O’Sullivan, do banco Crédit Suisse. O’Sullivan lançou neste ano o livro “The Levelling: What’s Next After Globalization” (O nivelamento: o que vem depois da globalização), argumentando que o mundo caminha para uma estrutura multipolar. Isso significa que cada região do planeta se torna mais isolada das demais, com uma maior coesão interna a cada polo e com suas próprias instituições internas de governança.
O’Sullivan afirma que as estruturas de governança internacionais foram incapazes de acompanhar a velocidade com que a economia se globalizou, as empresas se tornaram transnacionais e as decisões políticas e econômicas saíram das mãos dos governos nacionais. O descompasso levou a uma rejeição da integração internacional, primeiro entre eleitores, que começam a se inclinar mais para mensagens populistas; depois no sistema político em geral, que adota programas cada vez mais nacionalistas. Por fim, nas atitudes concretas de quem detém o poder.
Para o economista, a ordem que se constituiu nos últimos 30 anos se desfaz, entre outras razões, porque “o contrato que as pessoas acreditavam ter com políticos, governos, instituições e possivelmente entre si está se desintegrando”. É um erro se referir ao desconforto dos eleitores como mera inclinação ao populismo, porque por trás existe uma genuína sensação de desconforto e confusão com o mundo, diz.
Essas disputas internacionais se refletem nas políticas domésticas indiretamente. Assim, alguns episódios pontuais revelam o processo pelo qual partidos estabelecidos, tradicionais e anteriormente adeptos do consenso liberal vão aos poucos sendo empurrados na direção de maior protecionismo e nacionalismo. Muitas vezes, esse movimento também passa pela xenofobia.
Em outubro, o presidente da França, Emmanuel Macron, sofreu críticas ao conceder entrevista para uma revista conservadora de pequena tiragem, “Valeurs Actuelles”. Na entrevista, os temas da laicidade e do islã tiveram posição central. Para os críticos, Macron estava sinalizando aproximação com a direita nacionalista que tem votado em candidatos como Marine Le Pen.
Na Alemanha, Angela Merkel adotou em 2015 uma política de recebimento livre de imigrantes, com a divisa “Wir schaffen es” (Nós vamos conseguir). A política foi usada por partidos de extrema-direita, como o Alternativa para a Alemanha (AfD), para agitar o sentimento nacionalista em eleições regionais, com sucesso. Desde então, a política imigratória de Merkel mudou. Neste ano, foi aprovada uma lei que, por um lado, facilita o acesso de imigrantes ao mercado de trabalho, mas, por outro, também reduz drasticamente as barreiras para deportações.
Nos Países Baixos, as eleições de 2017 marcaram aparente derrota do extremista Geert Wilders e de seu Partido da Liberdade (PVV). Wilders é conhecido por vociferar contra a “islamização” de seu país e da Europa. Segundo o sociólogo Dirk Witteveen, porém, o que ocorreu naquele ano não foi um refluxo da mensagem anti-imigração de Wilders, mas a progressiva adoção, ao longo da campanha eleitora, de algumas de suas propostas pelos partidos tradicionais - os Conservadores Liberais (VVD), os Democratas Cristãos (CDA) e os Democratas (D66).
Witteveen aponta que o VDD e o CDA, que compõem a coalizão de governo, passaram de favoráveis à integração europeia a contrários à expansão das prerrogativas da UE. Ambos os partidos adotaram projetos nacionalistas e protecionistas, sobretudo em relação à imigração. Ainda assim, o partido de Wilders cresceu, chegando a 20 deputados de um total de 150. Tornou-se o segundo maior partido do país, atrás apenas dos conservadores, com 33 deputados.
O sociólogo faz a ressalva de que a plataforma de Wilders também propõe um Estado mais ativo na economia, com a redução da idade de aposentadoria e a construção de moradias para idosos. Assim como no exemplo de Trump, cuja campanha eleitoral, em 2016, se apoiava tanto na retórica anti-imigração como na promessa de geração de empregos e recuperação da indústria, nem sempre é possível discernir o nacionalismo político do econômico.
O caso americano chama atenção porque ambos os grandes partidos, que dominam a política do país quase inteiramente, têm se afastado desde 2016 do consenso liberal. O Partido Republicano, mais conservador, se tornou sob a batuta de Donald Trump um bastião do nacionalismo, inclusive econômico. A partir de 2017, os EUA bloquearam a TPP, saíram do Acordo de Paris e começaram uma guerra de tarifas contra a China.
Os democratas, por sua vez, testemunham a ascensão de movimentos internos que questionam as regras que sustentaram a economia globalizada das últimas décadas. A pré-candidatura de Bernie Sanders à Presidência em 2016, que disputou a indicação democrata com Hillary Clinton, já apontava para um Estado mais presente na economia. O projeto do Green New Deal, encampado pela deputada Alexandria Ocasio-Cortez, é fortemente baseado na capacidade estatal de fazer os investimentos necessários à transição energética, ainda que isso inclua a emissão de moeda e o endividamento público.
“Há um novo consenso surgindo na sociedade americana”, diz Stuenkel. “Se a China tem uma empresa como a Huawei, que domina a tecnologia 5G, e os Estados Unidos não têm nada parecido, a ideia é que isto é por falta de uma política econômica nacional.”
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