sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Monica de Bolle* - Nacionalismo cristão tupiniquim

- Revista Época

O partido de Bolsonaro caminha à frente de seus pares, juntando religião e política de forma explícita


Fui ler o manifesto do partido de Bolsonaro. Antes de mais nada, explico: fui ler o manifesto do novo partido de Bolsonaro não por curiosidade mórbida ou por masoquismo — o fiz por dever de ofício. Há meses ando empenhada na elaboração de um livro sobre nacionalismo econômico com colegas do Peterson Institute for International Economics, onde trabalho. A primeira parte desse livro foi dedicada à formulação de uma metodologia para medir o grau de nacionalismo dos principais partidos dos países-membros do G20 antes e depois da crise de 2008. Para os leitores que estiverem interessados no resultado dessa pesquisa e na metodologia, sigam o link .

Ao todo, lemos plataformas e manifestos de 55 partidos antes e depois da crise. Cruzamos nossos dados com bases de informação que classificam os partidos como populistas ou não populistas, além de outras que identificam seu viés ideológico. Concluímos que os partidos de extrema-direita atuais, tanto em países emergentes quanto nas economias avançadas, tendem a ser populistas e nacionalistas. 



Essa mistura de nacionalismo com populismo é recente — antes da onda atual, muitos partidos com viés nacionalista não eram necessariamente populistas. Por essa razão, as referências aos movimentos de extrema-direita tendem a chamá-los de “populistas” ou de “nacionalistas”, a depender de quem está escrevendo sobre o assunto. Entre cientistas políticos e economistas, o uso do termo “populista” para designar esses partidos e líderes tornou-se bastante comum, evidentemente com razão. No entanto, como a própria definição de populismo é vaga e o termo carrega interpretações diferentes a depender de quem o utiliza, preferimos nos ater à ideia de nacionalismo e, em particular, ao conceito de nacionalismo econômico. 
Definimos nacionalismo econômico a partir de ampla literatura sobre o tema. Para nós, trata-se de uma postura que não apenas sobrepõe os interesses nacionais aos externos, mas o faz em contraposição a eles. Para um nacionalista típico, o comércio entre dois países, por exemplo, é sempre um jogo de soma zero: meu país só ganha se seu país perde. Trump é o exemplo claro dessa forma de pensar as transações externas.

Ao ler o manifesto do Aliança pelo Brasil — trata-se de um documento curto: sete páginas, não mais — algumas idiossincrasias chamaram a atenção. A primeira é a importância dada à religião e aos ditos “valores cristãos”: a primeira parte do documento versa sobre o respeito a Deus e à religião num tropeço de palavras que ignora as raízes multiculturais brasileiras. Esse destaque dado à religião, embora presente em alguns partidos de extrema-direita, é raramente encontrado nos manifestos ou nas plataformas apresentados e por nós analisados. Geralmente permanece circunscrito à retórica de alguns líderes, mas não faz parte da elaboração de documentos dos partidos. Portanto, o partido de Bolsonaro caminha à frente de seus pares, juntando religião e política de forma explícita.

O segundo ponto que me chamou a atenção foram as referências à “preservação da herança cultural do Brasil”. Apesar de esse clichê estar na moda entre os seguidores do ministro das Relações Exteriores depois de ele ter sido apresentado ao hoje irrelevante Steve Bannon, ex-Casa Branca, o fato é que a tal da herança cultural é nada mais do que um factoide. O que seria essa herança diante das misturas que caracterizam o Brasil? Novamente, é a primeira vez que vejo tal destaque em um manifesto partidário da extrema-direita.

O documento, evidentemente, assume tom nacionalista na economia quando rejeita o “globalismo” a partir de uma equivalência para lá de falaciosa com o nazifascismo e o comunismo e reitera a soberania nacional. Quase brada: “A Amazônia é nossa!”. Contudo, ao tratar das políticas econômicas propriamente ditas, exalta a soberania do livre mercado como solução para todos os males, inclusive para a “luta de classes” que o manifesto explicitamente repudia. Até concordo que o termo “luta de classes” seja meio antiquado — mas onde há desigualdade, extrema pobreza e ausência de mobilidade social há luta de classes ou como preferirmos chamá-la para que não nos rotulem de marxistas, ó céus.

A grande inovação do extremismo bolsonarista é a invenção do fundamercadolismo liberaloide, fugindo da regra nacionalista-econômica de seus pares mundo afora. Suspeito que esse fundamercadolismo liberaloide vá ceder rapidamente às inclinações nacionalistas cristãs tupiniquins do restante do documento. O que sobrará é um punhado de parágrafos de inspiração ernesta ou um palavrório sem pé nem cabeça mesmo. Eis nossa contribuição para o nacionalismo ressurgente.



*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins

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