sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

José de Souza Martins* - Na alça de mira

- Eu & Fim de Semana / Valor Econômico

A questão agrária decorre do modo peculiar como se formou o nosso direito de propriedade para viabilizar a escravidão. Terra e trabalho estão juntos na história da propriedade no Brasil

O presidente da República anunciou que enviará ao Congresso Nacional projeto de lei que autoriza o emprego da Garantia da Lei e da Ordem (GLO) para reintegração de posse de propriedades rurais. Serão operações de agentes de segurança civis e militares, como os das Forças Armadas e da Polícia Federal.

Expôs seus motivos: “Quando marginais invadem propriedades rurais, e o juiz determina a reintegração de posse, como é quase como regra que governadores protelam, poderia, pelo nosso projeto, ter uma GLO do campo para chegar e tirar o cara” (sic). É esse um precário entendimento do que é o problema social da terra.

A verdade histórica do assunto está no polo oposto, não no sectário e ideológico. Aqui a questão agrária decorre do modo peculiar como se formou o nosso direito de propriedade para viabilizar a escravidão, sem a qual a terra de nada servia. Terra e trabalho estão juntos na história da propriedade no Brasil.

Aqui, quem luta por terra é no geral trabalhador, para trabalhar, não quem a quer para negociar e ganhar. Quem dela se apropria por meio de grilagem, de documentação falsa e da expulsão de quem nela trabalha comete crime. É comum que pistoleiros sejam “funcionários” desse tipo de “empreendimento”.

A questão agrária e as bases do conflito fundiário se definiram no século XIX, quando foi aprovada a Lei de Terras, em 1850, em conexão com a proibição do tráfico negreiro. O escravo não era apenas trabalhador do eito. Era também a garantia dos empréstimos hipotecários dos grandes fazendeiros para tocar suas fazendas. O fim provável e próximo da escravidão pedia um bem substituto para garantir esses empréstimos. Esse bem foi a instituição da propriedade da terra como mercadoria. O Estado abriu mão da soberania sobre o território e anexou-a ao direito de uso da terra, sob a forma de propriedade privada.

A legalidade da propriedade viria da compra. O trabalhador a teria se pudesse pagá-la com o suor do seu rosto, disse Antônio Prado, o artífice da abolição, no Senado do Império, em 1888. No fundo, para que muitos continuassem a trabalhar para poucos, não em troca de salário, mas principalmente em troca da permissão de plantio do próprio alimento nas terras das fazendas. Foi a receita pré-capitalista do lento capitalismo brasileiro.

Mas a partir da Revolução de Outubro de 1930, aos poucos, o governo foi retomando a soberania do Estado sobre o território do país. Começou com o Código de Águas, que separou o solo do subsolo e reduziu o direito de propriedade à superfície. Essa retomada estendeu-se às terras de marinha, às reservas indígenas, ao patrimônio histórico e ambiental. As constituições, a partir de 1934, enquadraram o direito de propriedade no pressuposto de sua função social.

Boa parte das tensões agrárias que levaram ao golpe de 1964 tiveram sua causa na Constituição de 1946, que reconhecia a função social da propriedade, mas inviabilizava a reforma agrária com o preceito da indenização prévia e em dinheiro da terra para isso desapropriada. Alterações no regime de trabalho nas fazendas de cana e café, com a expulsão dos trabalhadores residentes, desencadearam a pressão pela reforma agrária.

Na fase de preparação do que seria o golpe de Estado de 1964, uma comissão de civis, coordenada pelo general Golbery do Couto e Silva (1911-1987), elaborou um modelo de reforma agrária para o Brasil. Seria implantado pelo general Castelo Branco (1900-1967).

O Estatuto da Terra diferençou minifúndio, empresa, latifúndio por extensão e mesmo latifúndio por exploração insuficiente da terra. O latifúndio ficou sujeito a desapropriação para fins de reforma agrária, não mais mediante indenização em dinheiro, mas mediante a factível indenização em títulos da dívida agrária.

No fim do regime, o general Danilo Venturini (1922-2015), ministro extraordinário de assuntos fundiários, providenciou uma coletânea da legislação fundiária brasileira a começar da Lei de Sesmarias, de 1375, legado de Portugal. O intuito era fazer uma consolidação dessas leis. Em casos de litígios fundiários, a fonte primária de legitimações do direito à terra seria o trabalho, o seu cultivo, não o documento.

Os juízes nem sempre tinham o devido cuidado quanto à distinção entre documentos falsos e verdadeiros para conceder reintegração de posse contra posseiros. Só no Mato Grosso, a totalidade da área “documentada”, nos anos 1970, era de uma vez e meia o território do Estado. O governo de general Costa e Silva (1899-1969), em ato complementar, chegou a impor a condição da audiência prévia do órgão federal da reforma agrária antes da execução de reintegrações de posse.

As decisões agrárias de Bolsonaro, destes dias, desmontam a política agrária do regime militar.

*José de Souza Martins é sociólogo. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Entre outros livros, autor de O Cativeiro da Terra (Contexto).

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