- Folha de S. Paulo
Presidente precisaria dormir para não impor desonras novas às Forças Armadas
O presidente Jair Bolsonaro dorme mal. E isso o leva a refletir diante do espelho: “Será que termino o mandato?”. Em outras circunstâncias, mais pessimistas, a imagem refletida lhe diz: “Você não termina o mandato”. E a prefiguração que lhe tira o sono não está relacionada ao eventual sucesso ou insucesso da política econômica de Paulo AI-5 Guedes.
Tenha-se sobre esta a ideia que for, pobre não volta a nadar em iogurte tão cedo. Temos os nossos reacionários disfarçados de liberais a nos lembrar: “Não existe iogurte grátis!”.
Como que do nada, o chefe fez o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, passar o constrangimento de levar ao Congresso um projeto de lei —mais um!— que institui a excludente de ilicitude. Nesse caso, para as operações de Garantia da Lei e da Ordem. Azevedo e Silva afrontava, a contragosto, a memória do Exército, da República e até do bom senso.
Em entrevista à TV Record, o presidente refletiu: “Se assinar o decreto [de GLO], a tropa de segurança vai pra lá. Entra (sic) as Forças Armadas, Polícia Federal, Polícia Civil, Polícia Militar e PRF. Nessas condições, eu quero que esse pessoal vá pra fazer valer a sua força para recuperar a normalidade. Essa força tem que chegar para se impor. E não pode chegar pra se impor, e o policial responder por um processo e ser condenado a 30 anos de cadeia”.
Mas se impor contra quem? Aquela imagem insone no espelho é má conselheira. Em certa medida, ela conta com uma desordem que fosse patrocinada pelas esquerdas para, então, dar vazão à pulsão disruptiva do presidente e da turma que com ele chegou ao poder.
Até porque ele enfrenta, na extrema direita, a concorrência de Wilson Witzel e João Doria. Afinal, enfileiram-se corpos negros estaduais para satisfazer a fúria de algozes. Mas Bolsonaro, até agora, não pôde oferecer a sua cota de cadáveres negros federais.
Em 1887, marechal Deodoro mandou uma carta à princesa Isabel. Reproduzo um trecho: “Os oficiais, membros do Clube Militar, pedem a Vossa Alteza Imperial vênia para dirigir ao Governo Imperial um pedido, que é antes uma súplica. (...) Esperam que o Governo Imperial não consinta que nos destacamentos do Exército que seguem para o interior, com o fim, sem dúvida, de manter a ordem, tranquilizar a população e garantir a inviolabilidade das famílias, os soldados sejam encarregados da captura dos pobres negros que fogem à escravidão, ou porque vivam já cansados de sofrer os horrores, ou porque um raio de luz de liberdade lhes tenha aquecido o coração e iluminado a alma”.
Azevedo e Silva deveria ter lembrado a seu chefe, em 2019, o que escrevera Deodoro à princesa regente em 1887. As Forças Armadas não podem ser o capitão do mato do mandatário de turno.
De resto, onde estão as tentações disruptivas das esquerdas a justificar a licença para matar, que Sergio Moro também reivindica para a repressão ao crime comum —ou, se quiserem ler segundo a história brasileira, “para os pobres comuns e os pretos comuns”?
A investigação sobre as atividades extracurriculares de Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz serão retomadas —na verdade, nunca chegaram a estar ameaçadas. Uma economia mais virtuosa ou menos até pode ter algum peso na eventual revelação de escabrosidades de verões passados e presentes. Mas pode não ser ela a definir o futuro. Insônia.
Como Macbeth, o presidente recita, a seu modo, no palácio: “Pensei ouvir uma voz a gritar: ‘Não durma mais!/ Macbeth matou o sono!’, o sono inocente,/ Sono que deslinda a tessitura das preocupações,/ Morte de cada dia vivido, banho das chagas da labuta,/ Bálsamo da alma dolente, prato principal da natureza,/ Alimento maior na festa da vida” (tradução de Rafael Raffaelli).
Bolsonaro precisaria dormir para não impor desonras novas às Forças Armadas. Mas como?
Na peça, Macbeth não dorme. E...
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