Presidente concedeu benefício a policiais condenados por crimes culposos
Vinicius Sassine | O Globo
BRASÍLIA — O decreto do presidente Jair Bolsonaro que perdoa a pena aplicada a policiais e a outros agentes de segurança pública condenados por crimes culposos – quando não há a intenção de ser praticado – é um "ornitorrinco jurídico", um "excesso de poder" por parte do presidente e, numa análise inicial, uma violação à Constituição Federal. É o que afirma ao GLOBO o subprocurador-geral da República Domingos Sávio da Silveira, coordenador da Câmara de Controle Externo da Atividade Policial da Procuradoria-Geral da República (PGR).
A subprocuradora-geral Luiza Frischeisen, coordenadora da Câmara Criminal, um segundo colegiado da PGR responsável por assuntos relacionados a crimes cometidos por militares, também critica o decreto de indulto assinado ontem por Bolsonaro e publicado nesta terça-feira no Diário Oficial da União. Para ela, o mais preocupante do decreto é a extensão do perdão de pena a agentes de segurança que tenham sido condenados por ato cometido "mesmo que fora de serviço", como consta no texto assinado pelo presidente.
Os integrantes das duas câmaras vão analisar os detalhes do decreto e podem provocar o procurador-geral da República, Augusto Aras, para que conteste o decreto no Supremo Tribunal Federal (STF). Integrantes da cúpula da PGR lembram que este tipo de contestação já ocorreu por parte de um procurador-geral.
Em dezembro de 2017, Raquel Dodge ingressou no STF com uma ação direta de inconstitucionalidade contra decreto de indulto do presidente Michel Temer, que ampliava possibilidades de perdão em casos de condenação por corrupção. A ministra Cármen Lúcia suspendeu no dia seguinte, por liminar, os efeitos do decreto. Quase um ano e meio depois, o plenário do STF derrubou a liminar.
– É a primeira vez que vejo num decreto de indulto a vinculação da profissão de quem praticou o ato com a prática do crime. O presidente confunde a ideia de clemência com o indulto individual, que é o instrumento da graça. Ele criou um ornitorrinco jurídico ao confundir o indulto, que é genérico, com a graça. Ele criou um monstrengo – diz o subprocurador-geral que coordena a Câmara de Controle da Atividade Policial, em relação ao decreto de Bolsonaro.
Segundo Domingos, o decreto é "absolutamente inusitado" e "excede o poder" presidencial. Um outro fator de inconstitucionalidade, segundo o subprocurador-geral, é o atropelo do Congresso Nacional, que já havia rejeitado a proposta de excludente de ilicitude a agentes de segurança prevista no pacote anticrime formulado pelo ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro. Atentou-se contra o princípio da separação dos poderes, conforme o integrante da PGR.
– Ele deu (no decreto de indulto) o que o Congresso negou. De toda forma, o que se viu é muito menor do que ele havia prometido. A montanha pariu um rato. Eu não conheço nenhum caso em que o policial está preso por um crime culposo – afirma Domingos.
A subprocuradora-geral Luiza Frischeisen tem a mesma impressão. Crimes culposos praticados por agentes de segurança acabam sendo abarcados pelo princípio da legítima defesa, já previsto no Código Penal. Até mesmo o conceito de "excesso culposo", quando o policial se excede na hora de revidar um ataque, por exemplo, gera uma variação expressiva na maneira como o caso é conduzido pela Justiça. Não são comuns condenações por crimes culposos.
– O que me preocupa é a extensão do perdão para pessoas fora do exercício da função – afirma Luiza.
A coordenadora da Câmara Criminal diz que nem prisões preventivas são decretadas em casos culposos, conforme entendimento recorrente do Superior Tribunal de Justiça (STJ). Ela também entende que o benefício do indulto não pode ser concedido a uma categoria específica de profissionais.
– Outros condenados podem alegar isonomia e fazer o mesmo pedido de perdão. Além disso, há a questão disciplinar. Não se indulta a parte disciplinar do policial. Mas, se uma coisa decorre da outra, esse policial perdoado vai pedir para voltar ao exercício de sua função.
O decreto de Bolsonaro perdoa agentes de segurança pública que tenham sido condenados por "excesso culposo" ou outros crimes culposos, desde que tenham cumprido um sexto da pena. A regra vale para quem cometeu o crime "no exercício da função ou em decorrência dela". O texto também cria a hipótese de conceder o perdão da pena para policiais em folga, desde que tenham atuado para eliminar o risco contra si ou outra pessoa. O governo justifica este trecho "pelo risco inerente à profissão, que os expõem constantemente ao perigo, e pelo fato de possuírem o dever de agir para evitar crimes mesmo quando estão fora do serviço". O decreto também vai beneficiar militares das Forças Armadas empregados em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO).
De acordo com o texto, o indulto para agentes de segurança pública não poderá ser concedido para quem tiver cometido 38 tipos de delitos. Não poderão ser beneficiados com o indulto, por exemplo, presos condenados por crimes hediondos, latrocínio, estupro, tortura, crimes relacionados com organizações criminosas, terrorismo, tráfico de drogas, posse ou porte ilegal de arma de fogo e corrupção, entre outros delitos.
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