quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Vera Magalhães - Natal isentão a todos

- O Estado de S.Paulo

Que a política não mele o amigo secreto e a harmonia familiar

A esta altura, quando você está lendo este texto, de ressaca e se preparando para esquentar as sobras do peru para o almoço, já aconteceu a parte 1 do Natal, a reunião da véspera, para a Ceia. Espero, portanto, que não chegue atrasada e o poncho já não tenha sido entornado.

Desejo a todos um feliz Natal, sem tretas familiares por conta de política, futebol, do formato da Terra, a presença ou não de uva passa nos preparos ou se o novo Star Wars é um clássico ou uma fraude. Em resumo: um Natal isentão para todos!

Esse adjetivo tão 2019 surgiu como uma tentativa de estigmatizar o centro. Se você não estava firmemente agarrado a qualquer um dos polos do debate político, tascando hashtag #LulaLivre até em post de gatinhos ou cantando o melô do MC Reaça no banho, você estava condenado a ser “xingado” de isentão.

Só isso já é um sintoma eloquente dos tempos bizarros que vivemos hoje: ser isento deveria ser uma qualidade desejável, não uma pereba. No aumentativo, então: nossa, você é isento mesmo, uma espécie de fada sensata.

Mas não no Brasil de 2019. Neste você precisa ver pelo em ovo se um título de jornal diz apenas “Flávio” (6 caracteres) e não “Flávio Bolsonaro” (16 toques dos 32 possíveis em uma manchete, que ainda precisa ter verbo etc.). Complô da mídia golpista!

Se você está no outro polo, por sua vez, você precisa acreditar que é possível um PM comprar R$ 21 mil em chocolates. Afinal, é Natal, e ele tem de ser doce.

O isentão, esse facínora, vai entender que o título pode ter apenas Flávio, uma vez que o corpo da reportagem forçosamente terá o sobrenome do sujeito, sem que isso signifique algum plano da imprensa maligna para proteger o dito-cujo. Também é capaz de ver que R$ 21 mil em chocolates nem na terra do Willy Wonka. Mas será xingado dos dois lados por isso.

Mas como Natal é tempo de utopia, de buscar a harmonia e de superar divergências, eu acredito piamente que será possível uma reunião entre o tio reaça e a sobrinha feminista sem que este seja o tema dominante à mesa.

Acho razoável esperar que a gente não transporte desta década para a próxima, que começa logo ali, a incapacidade dos anos 10 deste século de se chegar a um meio termo, de reconhecer méritos nos pontos de vista alheios sem achar que isso significa conspurcar os próprios, de deixar de ver políticos como heróis.

Porque, a se manter a irracionalidade que tem sido a tônica da discussão política, teremos mais uma década perdida, como foi esta que acaba agora. A opção pelos extremos nos fez retroceder em termos de civilidade ao ponto de ameaçar o Natal como antes nem a música da Simone tinha conseguido.

Pontos pacíficos em termos de conquistas sociais, liberdades antes óbvias, consensos científicos, a possibilidade de cada um votar em quem acredita sem ser “cancelado" pelos amigos e parentes, tudo foi sacrificado no altar do alinhamento sem nuances a esta ou aquela corrente política. Sendo que esta E aquela têm os vícios que são expostos todos os dias por meio de fatos que insistem em também ser desconsiderados.

Então, se você ainda não tiver rompido com aqueles que você ama na noite de ontem, recomendo um almoço de Natal absolutamente isento de política. Pode tacar frutas cristalizadas em tudo, mas deixe seus argumentos absolutos para outra ocasião.

Afinal, assim como um dia todos nós passamos pela decepção de descobrir que Papai Noel era só um desempregado fazendo bico para pagar os boletos, todos os inflamados defensores de político um dia vão descobrir que não há mitos nem salvadores da Pátria nesta matéria. Neste dia, talvez seja tarde demais para ligar para o primo com quem se brigou de morte. Aí sim a ressaca moral vai ser incurável. Feliz Natal a todos!

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