- O Globo
Está em marcha no Congresso o atual processo de impeachment de Donald Trump, que dificilmente não será contaminado pelo assassinato
A história e o destino têm seus caprichos. De repente, um incômodo penduricalho da “Guerra ao Terror” de 2003 pode vir a se cruzar de forma explosiva com o assassinato em território iraquiano de um homem forte do Irã, general Qassem Soleimani. E Donald Trump é o elo incendiário dessa fusão.
Antes de ordenar a execução de Soleimani, o presidente dos Estados Unidos avaliava zerar um “resto de guerra” do conflito anterior. Incomodado com quem, nas suas palavras, costuma defender o conceito de “Forças Armadas politicamente corretas”, Trump havia indultado três integrantes da Marinha acusados de crimes de guerra no Iraque. Como esta medida tomada dois meses atrás agradara a seu eleitorado, o presidente começara a cogitar a concessão de mais um perdão presidencial. Não a qualquer veterano, mas, segundo o site “Daily Beast”, a Nicholas Slatten, membro do infame exército privado Blackwater que atuou no Iraque a serviço do Pentágono.
Slatten, condenado à prisão perpétua nos EUA, liderou a chamada “fuzilaria da Praça Nisour” de Bagdá, em 2007, na qual morreram dez homens, duas mulheres e duas crianças. Foi uma chacina a tiros de fuzil e granadas, que feriu outros 17. Nenhuma das vítimas portava armas. Apenas estavam vivas, até ali. Do episódio ficaram feridas escancaradas até hoje, pois o Pentágono impediu que os implicados fossem julgados no Iraque e os retirou às pressas do país. Ficou a promessa de que seriam — e foram — julgados em cortes dos EUA. A condenação levou 11 anos para sair.
Imagine-se o rancor redobrado dos iraquianos se ouvirem falar das cogitações caridosas da Casa Branca, justo na semana em que drones militares americanos dispararam sem pedir licença.
A lógica, ou o ímpeto, do presidente Trump em usar a prerrogativa do cargo para indultar homicidas de guerra é a mesma do comandante em chefe Trump que ordena a execução em terra estrangeira de um general iraniano de um Estado soberano, que tinha cargo oficial e vida pública, função e endereço conhecidos. A extensa folha corrida de atrocidades e terrorismo (inclusive contra americanos) computada a Qassem Soleimani no comando das Forças Quds — um dos pilares das Guardas Revolucionárias Iranianas —não valida sua execução sumária por ordem de um presidente democrático.
Em tese, poderia ser considerado ato de guerra não autorizado pelo Congresso, indevidamente comparável à eliminação do líder terrorista sem cargo e sem país Osama bin Laden, morto no seu esconderijo do Paquistão. Mas como quem designou a Força Quds como organização terrorista foi o governo Trump, isso lhe dá um respiro jurídico.
Pela Constituição dos Estados Unidos, é necessária a aprovação do Congresso para o assassinato de líderes estrangeiros —ou para qualquer outro ato de guerra que não se enquadre em uma situação de autodefesa imediata da nação. Com bom motivo: dado que todo cidadão pode vir a ser afetado de alguma forma por um conflito armado, o sistema exige que a população, através de seus representantes legislativos, autorize a decisão. Não foi sem motivo que Franklin Delano Roosevelt esperou o ataque japonês a Pearl Harbour antes de pedir a inevitável autorização para engajar os Estados Unidos na Segunda Guerra.
Em 2002, embalado pelo fervor nacionalista pós-ataque do 11 de Setembro em solo americano, e turbinado pela posição de uma mídia acrítica, o Congresso dos Estados Unidos cometeu o erro histórico de aprovar a “Autorização para o Uso de Força Militar Contra o Iraque” baseado em premissas falsas do governo George W. Bush. Deu no que deu. Já se passaram 18 anos desde então e uma geração inteira no Oriente Médio nasceu em terra arrasada e continua vivendo sem paz.
Ainda semanas atrás, um explosivo baú de documentos secretos sobre a guerra no Afeganistão revelou o tamanho das deliberadas mentiras divulgadas pelos últimos ocupantes da Casa Branca quanto ao atoleiro militar dos Estados Unidos naquele interminável conflito.
Desta vez, o cenário tem contornos bastante diversos. Está em marcha no Congresso o atual processo de impeachment de Donald Trump, que dificilmente não será contaminado pelo assassinato de um homem que George W. Bush e Barack Obama preferiram manter intocável. Esse Congresso não autorizou nenhuma guerra contra o Irã ou qualquer campanha de assassinato de autoridades xiitas, nem o presidente está propenso a encaminhar qualquer pedido neste sentido. Até porque, no entender de Andrew Exum, vice-secretário de Defesa Assistente no governo Obama, o assassinato de Soleimani “não significa guerra, não levará à guerra, e não corre o risco de virar guerra. Já é guerra.”
No caso, mais uma guerra de insensatez.
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