- Folha de S. Paulo
É possível que venhamos a ter conflito aberto entre Executivo e Judiciário
Até onde é possível ir? Em mais um teste para as instituições democráticas brasileiras, o presidente da República se dirigiu para o prédio do Supremo Tribunal Federal, sem agendamento prévio, para pressionar o Judiciário a tomar medidas de acordo com os interesses presidenciais.
É mais uma rodada na batalha do Executivo contra os outros Poderes, que inclui, só nos últimos dias, as recusas do governo em entregar os resultados do exame do presidente para o coronavírus e o vídeo de uma reunião entre o chefe do Executivo e seus ministros, incluindo o ex-ministro Sergio Moro (Justiça).
Outros ministros do Supremo chamaram a visita de inadequada. É muito mais do que isso. É uma nova rodada na briga do contraliberalismo contra as instituições democráticas.
Nesse tipo de batalha, os autocratas têm levado a melhor. No dia 25 de março, Rodrigo Duterte conseguiu poderes especiais para liderar a resposta das Filipinas à pandemia global do coronavírus. Cinco dias depois, Viktor Orbán colocou a democracia húngara em quarentena, ao obter, através da sua maioria no Congresso, poderes especiais sem datas para acabar.
É o sonho de todo líder populista obter poderes especiais como os que Duterte extraiu do Congresso filipino, como nacionalizar empresas e realocar, sem muitas restrições, os gastos públicos. Hoje, a única barreira para isso no Brasil é a falta de uma base de apoio ao governo no congresso.
É possível que venhamos a ter conflito aberto entre Executivo e Judiciário. Não à toa, para mostrar poder, durante a reunião, o presidente brasileiro anunciou novo decreto para ampliar rol de serviços essenciais.
De certa forma, a situação atual no Brasil lembra o que aconteceu nos EUA durante a Grande Depressão.
O programa americano de recuperação econômica, o New Deal, sofreu nas mãos do Judiciário americano. Quatro dos juízes conservadores, que votavam em conjunto contra o que era percebido como exacerbação do Poder Executivo, chegaram a ser chamados de quatro juízes do apocalipse.
Em 1935, por 6 votos a 3, a Suprema Corte americana votou pela dissolução do Ato de Ajuste à Agricultura. Em Iowa, efígies dos seis juízes que votaram para desfazer o programa de subsídios foram enforcadas e exibidas publicamente.
Contudo, mesmo durante o auge das reclamações presidenciais sobre o ativismo jurídico, Franklin Roosevelt jamais planejou pressionar a Suprema Corte diretamente.
Não é à toa que o prédio da mais importante instituição americana do Judiciário fica na rua Número 1 em Washington. É símbolo da importância da Justiça como contrapeso a possíveis abusos por parte do Legislativo ou do Executivo.
Não há, na história das democracias maduras, algo parecido com o que vimos ontem no Brasil: um presidente se dirigindo, sem agendamento prévio, para um tête-à-tête com o presidente da Corte Suprema, com o objetivo de pressionar tal corte a tomar decisões de interesse do executivo. Foi à reunião representar os interesses de 40% do PIB, ignorando os 40% a mais de óbitos pela Covid-19 no país, só na última semana.
A cada dia, o presidente inventa um novo absurdo. Pior, no final se faz de vítima, posando de pobre coitado cada vez que as instituições fazem seu trabalho e podam suas asas.
Até que ponto a democracia brasileira aguenta essa guerra de atrito? Na Hungria e nas Filipinas, o contraliberalismo venceu. O que acontecerá no Brasil?
*Rodrigo Zeidan é professor da New York University Shangai (China) e da Fundação Dom Cabral e doutor em economia pela UFRJ
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