- Revista Época
Podia-se pensar que uma ameaça autoritária não chegaria aonde chegou, mas agora vê-se que ela continuava ali, submersa
A escalada do autoritarismo de Bolsonaro tem sido num ritmo tal que pode fazer parecer, ao menos aos que acreditaram numa equivalência nesse quesito entre ele e o PT, que tudo isso é novo. O ódio sempre foi método para Bolsonaro. Foi por meio dele que se destacou na multidão, indo a programas de TV popularescos. Foi por meio do ódio que conseguiu se diferenciar de Ciro, Alckmin, Amoêdo, Marina e de outros que batiam em Lula, mas não tanto quanto ele, não da maneira como fazia, de forma que transmitisse a quem estava exaurido, espumando como ele, que só Bolsonaro poderia derrotar Fernando Haddad. Tem sido por meio do ódio que o presidente tem trazido o país até aqui.
Nos 16 meses de governo, não houve uma semana em que o presidente não expressou sua raiva. Um adversário, uma minoria, um antigo aliado, um artista, um jornalista. Odiar é sua profissão de fé. E isso não brota do nada, como se em geração espontânea. O ódio é cultivado. Bolsonaro é consequência de um ódio coletivo, ruminado nos anos do petismo e de seus erros atrozes que fizeram aumentar a ira dos que sempre rejeitaram a esquerda e despertar, entre os que apoiaram Lula, o rancor por terem sido enganados. Mas o presidente também é causa. Ao perceber que algum tema pode dividir mais o país, atiçar o fígado de seus apoiadores, pinça-o e, com sua tropa digital, mobiliza parte do país em torno daquilo — da cloroquina ao golden shower.
A Editora Âyiné lançou em abril no Brasil o livro Contra o ódio, um dos mais prestigiados da filósofa alemã Carolin Emcke, premiada em 2016 na Feira de Frankfurt com o Prêmio da Paz, como uma forma de apelo à tolerância. A Alemanha descrita por Emcke quatro anos atrás muito se parecia com o Brasil de então e mais ainda com o de agora. “Algo mudou na Alemanha. Agora se odeia de forma aberta e descarada. Às vezes com um sorriso no rosto e às vezes não, mas na maioria das vezes sem nenhum escrúpulo. As cartas de ameaças, que sempre existiram, hoje são assinadas com nome e endereço. Delírios violentos e manifestações de ódio expressos na internet se escondem cada vez menos atrás de um pseudônimo”, escreveu a intelectual, uma das mais importantes hoje na Europa, surpreendendo-se com o renascimento do ódio num país que deu aula sobre o assunto.
O mesmo vale para o Brasil. Podia-se pensar que uma ameaça autoritária não chegaria aonde chegou, mas agora vê-se que ela continuava ali, submersa. Aliás, o ódio não é uma exclusividade da direita, nem de ditadores. Lula também incitou o ódio, em grau infinitamente menor do que Bolsonaro, e lucrou eleitoralmente muito mais quando foi mais paz e amor do que raivoso. Mas nenhuma comparação é justa nesse ponto. Não houve governante recente no Brasil que tenha feito do ódio seu modus operandi, como o atual.
As redes sociais do presidente e de seus filhos — Flávio Bolsonaro menos, registre-se — destilam raiva. Entre obsessões, teorias da conspiração ou simples implicâncias com o objetivo de debochar, difamar, humilhar, eles têm alvos permanentes e circunstanciais. Carlos Bolsonaro posta quase diariamente uma foto de João Doria dançando com uma calça colada, querendo insinuar sabe-se lá o quê. O vídeo gera diariamente ondas de comentários homofóbicos. A jornalista Patrícia Campos Mello, que foi à Justiça para processar Jair Bolsonaro pela ofensa de tê-la chamado de prostituta, foi perseguida por bolsonaristas incitados pelas ofensas do presidente. O mesmo ocorreu durante anos com Maria do Rosário e Jean Wyllys. Goste-se ou não dos dois, Bolsonaro e seus comentários odiosos transformaram a vida de ambos em um inferno. Jean Wyllys perdeu sua liberdade. Maria do Rosário até hoje sofre constrangimentos públicos e é vítima na internet de difamação devido ao ódio engendrado.
Criou-se uma atmosfera de repúdio ao respeito pelo outro. A coisa virou de cabeça para baixo. Parece que quem desrespeita os outros, vocifera insultos e preconceitos, deve se orgulhar.
“Quem sente ódio passa uma segurança muito maior hoje do que quem defende a tolerância e o respeito. Bolsonaro não titubeia em sua raiva”
E mostrou isso na semana passada. Na terça-feira 5, a empresária Marluce Gomes, uma das que agrediu os enfermeiros na Praça dos Três Poderes, foi à porta do Palácio da Alvorada para assistir ao stand-up de horror que o presidente faz todos os dias. A empresária é a que, nas imagens da agressão aos enfermeiros, aparece com uma bandeira do Brasil como capa de super-heroína. Naquele dia, já sabendo que é formalmente investigada pelo Ministério Público do Distrito Federal, foi ao palácio pedir apoio de Bolsonaro.
“Se houve agressão, foi verbal, coisa que eles fazem o tempo todo conosco. Houve zero agressão”, disse o presidente a ela.
Não é possível saber a que ato em específico Bolsonaro fazia referência ao falar na agressão. Entre 1º e 3 de maio, profissionais de diferentes áreas apanharam todos os dias de bolsonaristas.
No Dia do Trabalho, uma enfermeira foi sacudida por um irado apoiador do presidente. No sábado 2, em frente à Superintendência da Polícia Federal em Curitiba, um cinegrafista de uma afiliada da TV Record foi empurrado. No domingo, as vítimas foram os jornalistas Dida Sampaio, Orlando Brito, Fábio Pupo, Nivaldo Carboni e o motorista Marcos Pereira, integrante da equipe de reportagem do jornal O Estado de S. Paulo. Sampaio levou um soco no estômago. Brito, de 70 anos, foi empurrado.
Bolsonaro, na mesma conversa com os apoiadores, à porta do palácio, defendeu-se dizendo que não é responsável pelas agressões físicas — à verbal, em sua própria fala, expressou apoio. Mas o presidente tem responsabilidade, sim, na agressão física. Ela é resultado de sua permanente perseguição a de quem dele discorda ou a quem o incomoda.
De novo, sem novidades no front. O acervo de expressões preconceituosas e por vezes criminosas do presidente é vasto, em três décadas vivendo da política. Sempre é bom relembrar, embora tudo tenha sido sempre noticiado.
Contra os gays. “A maioria é fruto do consumo de drogas”, disse em 2014 ao jornal El País. “Seria incapaz de amar um filho homossexual. Não vou dar uma de hipócrita aqui: prefiro que um filho meu morra num acidente do que apareça com um bigodudo por aí. Para mim ele vai ter morrido mesmo”, afirmou, em 2011, à revista Playboy. “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro ele muda o comportamento dele”, disse, em 2010, à TV Câmara.
Contra os negros. “Fui num quilombola (sic) em Eldorado Paulista. O afrodescendente mais leve lá pesava 7 arrobas. Não fazem nada! Acho que nem para procriadores servem mais”, disse, em 2017, numa fala contra quilombolas que o levaria a ser denunciado por racismo no Supremo Tribunal Federal, acusação que foi recusada na Primeira Turma com os votos de Luiz Fux, Marco Aurélio Mello e, veja só, Alexandre de Moraes.
Contra seus adversários políticos. “Deveriam ter sido fuzilados uns 30 mil corruptos, a começar pelo presidente Fernando Henrique Cardoso”, afirmou, em 1999, mesmo ano desta: “Pau de arara funciona. Sou favorável à tortura, tu sabe disso. E o povo é favorável também”. “O erro da ditadura foi torturar e não matar”, disse em 2016. Dois anos depois: “Vamos fuzilar a petralhada aqui do Acre”.
Erra quem prega o olho por olho. Serenidade e razão são mais poderosos. Em seu Contra o ódio, Emcke lembra que quem enfrenta o ódio com mais ódio já foi manipulado, aproximando-se daquilo que aqueles que odeiam desejam que a pessoa se torne. “O ódio só pode ser combatido com o que escapa aos que odeiam: observação cuidadosa, diferenciações contínuas e dúvidas sobre si mesmo. Isso requer desmontar o ódio pouco a pouco em todas as suas partes.” Requer racionalidade, fatos, debate inteligente. Sem omissão.
Lima Duarte nesta semana emocionou os brasileiros que tem vísceras, ao falar nisso. O ator de 90 anos homenageou Flávio Migliaccio, o brilhante colega que, aos 85 anos, se matou na segunda-feira 4. Lima lembrou o “hálito putrefato” de 1964, o “bafio terrível de 1968” e, sem dar nome ao miasma do Brasil de 2020, em que o vírus e o ódio se aliam, lembrou Bertolt Brecht e Os fuzis da senhora Carrar, escrita em 1937 em meio à Guerra Civil Espanhola. Teresa Carrar não quer que os filhos sigam para a guerra e tenham o mesmo destino do marido, morto anos antes. Por isso, esconde seus fuzis. Lima, como se cobrasse posicionamento de quem se cala, citou a frase de Pedro Jáqueras, irmão da Senhora Carrar, que ele interpretou no Teatro de Arena: “As pessoas que não querem assumir nenhuma culpa acabam lavando as mãos em bacias de sangue”.
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