- Valor Econômico / Eu & Fim de Semana
Há um precioso capital social na cultura obreira do campo e da cidade e na universidade pública brasileira, dotada de competência e de condições de reinventar o capitalismo
A grande dúvida deste momento, no mundo inteiro, é sobre qual será o sistema econômico que substituirá a economia que está sendo destruída pela pandemia. Não só por ela, mas também, e sobretudo, pelas irracionalidades do lucro sem limite nem cálculo social que, no último meio século, arruinou a vida de milhões de pessoas em todo o planeta, desenraizou multidões e as expôs a dolorosas vulnerabilidades, cujas maiores chagas são as destes dias.
Esse vírus não é o causador único e decisivo do drama que estamos vivendo. Ele é, sobretudo, o agente oportunista que encontrou o meio propício de sociedades despreparadas e imprevidentes que fizeram a opção preferencial pelo meramente lucrativo, sem responsabilidade social. No Brasil, milhares de pessoas estão desprovidas de meios para enfrentar períodos de adversidades, como este.
Nos anos 1940 e até o início dos anos 1960, na roça e na cidade, as famílias de trabalhadores ainda tinham modos de vida que as protegiam das incertezas da economia dominante e oficial e outras incertezas mais, que as havia. As famílias eram capazes de ajustamentos rápidos a situações de incerteza, como foi a do período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Muita improvisação baseada na cultura popular atenuou as carências e os constrangimentos cotidianos.
Quando houve o golpe de Estado de 1º de abril de 1964, uma das primeiras providências do governo militar, com o envolvimento da Fiesp, foi a de criar o Grupo Permanente de Mobilização Industrial. As indústrias organizaram-se para, em curto tempo, numa eventual situação de conflito, converterem suas linhas de produção em linhas de produção de material bélico.
O rico e equipado parque industrial brasileiro, no entanto, não se preparou para o inesperado como o da crise sanitária de agora e a crise social por ela agravada. Apesar dos alertas da dengue, da zika e da chicungunha. A indústria dos grandes números e dos grandes lucros não está preparada para rapidamente produzir respiradores para as UTIs ou coisas tão simples como as máscaras de proteção do rosto.
Um fenômeno curioso e significativo vem acontecendo. Em questão de pouquíssimos dias, máscaras começaram a chegar aos que delas necessitam. Mulheres educadas na tradição do trabalho artesanal começaram a produzir máscaras com retalhos de tecidos, a preços muito acessíveis, sem sair do confinamento e sem quebrar a quarentena. Enquanto o governo tenta importar da China as máscaras necessárias à prevenção do contágio, a grande indústria paulista não tem solução para o problema.
Donas de casa talentosas, sem o saber, estão derrotando as altas ponderações teóricas do neoliberalismo econômico. Um artesão de pequena indústria do interior anunciou que estava preparado para produzir aquelas sobremáscaras transparentes, adotadas nos hospitais. Mostrou como fazê-las. Bastaria que o procurassem.
O mesmo se dá com os respiradores. Rapidamente, o que parecia impossível encontrou soluções criativas aqui mesmo. Com apoio do Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial), operários qualificados começaram a restaurar respiradores, colocando-os em uso novamente.
O episódio mais significativo foi o do respirador em poucos dias produzido pela USP (Universidade de São Paulo). Mediante associação da Escola Politécnica, da Faculdade de Medicina e da Faculdade de Medicina Veterinária, a universidade fez um respirador que pode ser construído em três dias ao preço de R$ 1 mil, quando o importado custa R$ 15 mil.
Enquanto isso, o governo foi tentar importar as máquinas da China, comprou-as e a entrega foi atravessada pelo governo americano. Toda bajulação de Bolsonaro e família ao esdrúxulo presidente Trump não deu em nada. Foi preciso que um vírus invisível desmascarasse a geopolítica do regime bolsonarista e revelasse quem é aliado de quem. Os materiais que não chegaram, certamente representam a morte evitável de brasileiros.
Algumas preciosas revelações, como as desses casos, mostram que o Brasil, apesar de todo o enorme empenho, desde o regime militar, de transformá-lo num país exportador de commodities e dependente do agronegócio, de desindustrializá-lo, como em boa parte conseguiram, ainda conserva um precioso capital social que não está nas mãos nem das indústrias nem do grande capital.
Está na cultura obreira do campo e da cidade, que sobreviveu ao ímpeto destruidor, e está na universidade pública brasileira, dotado de competência e de condições de reinventar o capitalismo de conformidade com nossas carências e nossa criatividade.
É provável que o vírus desperte, entre nós, sentimentos nacionalistas, centrados numa extensa revisão social e moral da economia.
*José de Souza Martins é sociólogo. Professor Emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Pesquisador Emérito do CNPq. Membro da Academia Paulista de Letras. Entre outros livros, organizador e co-autor de "A Morte e os Mortos na Sociedade Brasileira" (Hucitec).
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