quarta-feira, 6 de maio de 2020

Tiago Cavalcanti* - Lições de uma pandemia

- Valor Econômico

No curto prazo, pelo menos, não parece existir o ‘tradeoff’ entre saúde e economia

Na minha mais recente coluna deste Valor, no mês de abril, escrevi sobre a história e os desafios de uma pandemia. Naquele momento, eram 800 mil casos e cerca de 40 mil mortes confirmadas provocadas pela covid-19 no mundo. Hoje, o número de casos no globo já passa de 3,6 milhões, enquanto o número de mortes está acima de 250 mil.
O Brasil atualmente tem aproximadamente 110 mil casos e 7,4 mil mortes confirmadas por conta do coronavírus. Enquanto em vários países o topo da curva de mortes já ficou para trás, no Brasil essa mesma curva continua com tendência ascendente. Sem falar nas subnotificações, que devem ser elevadas e os números reais bem superiores aos dados oficiais.

Evidências indicam que o argumento de que o não isolamento irá salvar a economia parece, sim, falacioso

De Manaus talvez venham as imagens mais chocantes da covid-19 no país, onde os mortos estão sendo enterrados em valas coletivas. Na cidade que fica no coração da Amazônia, desde o início da pandemia, há 2.200 mortes acima do padrão de óbitos verificados em anos anteriores para a mesma época do ano e, no entanto, há 350 óbitos registrados oficialmente em decorrência da covid-19.

Quais são as lições que podemos tirar da pandemia até o momento? Sem dúvida nenhuma essa pandemia é acima de tudo uma crise sanitária e humanitária. O isolamento social não é apenas uma resposta às restrições de movimentação impostas pelos governos, mas também uma reação das pessoas ao perigo do contágio com consequências heterogêneas na saúde dos indivíduos, com os idosos sofrendo o maior risco de complicações e óbitos.

Depender apenas das decisões individuais em relação ao isolamento social é uma estratégia arriscada. As pessoas não internalizam os riscos da transmissão do vírus, gerando, o que chamamos em economia, um efeito externo no contágio, justificando de forma clara a intervenção governamental. Além disso, não é preciso existir uma fração grande de pessoas descumprindo as regras de isolamento para que o número de casos venha a subir.

O argumento contra as medidas de isolamento social é que, ao dificultar a circulação das pessoas, essas intervenções geram custos econômicos elevados, principalmente para os trabalhadores que não conseguem exercer suas atividade laborais e perderam o emprego, gerando um círculo vicioso de forte queda da renda e do emprego e, consequentemente, deprimindo a demanda.

É muito difícil saber como a economia iria se comportar sem o isolamento social. Será que a recessão seria bem menor? O número de mortes seria parecido? Há exemplos nos quais podemos aprender algumas lições.

As medidas de isolamento social na Suécia foram bem menos rígidas do que as medidas implementadas pela Dinamarca, país vizinho e com cultura semelhante. A Suécia tem hoje um total de 2.854 mortes por covid-19, ou 284 óbitos por 1 milhão de habitantes. O número de mortes por covid-19 na Dinamarca é de 503, ou 87 por 1 milhão de habitantes. Ou seja, pela comparação acima, o isolamento social foi claramente efetivo em salvar vidas, já que o número de mortes por habitante na Suécia foi 3 vezes maior do que na Dinamarca.

Quanto à economia, as previsões da contração do Produto Interno Bruto da Suécia são bem parecidas com as previsões feitas para a economia da Dinamarca - queda de cerca de 6,5% nos dois países. Não só isso, estatísticas de informações granulares mostram que a queda no padrão de consumo dos dois países durante a pandemia foram bem semelhantes. Portanto, pelo menos no curto prazo, parece não existir esse “tradeoff” de saúde versus economia, narrativa que o presidente brasileiro tem procurado ressaltar.

Em trabalho recente, economistas do Fed americano e da universidade do MIT mostram que os Estados americanos responsáveis por implementar medidas resolutas de isolamento social durante a pandemia da “Gripe Espanhola” de 1918, conseguiram voltar à normalidade em um prazo menor e não sofreram uma recessão como os outros Estados, que demoraram a intervir na circulação das pessoas e no controle da pandemia. Assim, novamente, o argumento de que o não isolamento irá salvar a economia parece, sim, falacioso.

Atualmente, a evidência parece ir nessa direção. Alguns países, como a China, Nova Zelândia e Portugal, após medidas rígidas de isolamento social e controle da pandemia, começam a definir um plano de saída desse isolamento e o relaxamento de algumas políticas. Outros países, que demoraram a implementar medidas de isolamento social, como o Reino Unido, irão contraditoriamente continuar no isolamento por mais tempo até a curva de casos mostrar sinais de queda persistente.

Outro argumento contra a supressão de movimentação das pessoas é que, sem a vacina, o número de casos e fatalidades de covid-19 em um prazo longo serão bem parecidos com ou sem o lockdown. A ideia por trás desse argumento é que sem o passaporte da imunidade, as sociedades que tiveram menos casos estarão mais vulneráveis a novos surtos e, portanto, o relaxamento do isolamento nesses países levará naturalmente a mais casos e óbitos.

Há dois problemas com esse argumento acima. Primeiro, um dos objetivos imediatos do lockdown é diminuir a velocidade de contágio para evitar o colapso dos hospitais e médicos terem que escolher quem receberá tratamento, como foi o caso na Itália. Segundo, é que muitos recursos foram alocados para o desenvolvimento de uma vacina ou de coquetéis que possam ter efeitos no tratamento da doença e assim a cada dia a chance de menos pessoas irem ao óbito devido à covid-19 diminui.

Uma lição final que aprendemos até agora nessa pandemia é que ainda há bastante incerteza sobre o contágio da covid-19, sua letalidade e eficácia dos tratamentos. Não são apenas as medidas de isolamento impostas pelos governos que são importantes para controlar a pandemia, mas também o discurso e as ações dos líderes. De fato, as estratégias sanitárias só terão efeitos com a coordenação de políticas, ações e discursos dos governos federal, estadual e municipal.

Em pesquisa que realizei em conjunto com Nicolás Ajzenman e Daniel da Mata, ambos professores de economia da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, usamos os dados anônimos com geolocalização de 60 milhões de celulares da empresa In Loco e cruzamos com os resultados da eleição presidencial de 2018.

Mostramos com métodos econométricos que as falas e gestos do presidente Bolsonaro contra o isolamento social influenciou diretamente no comportamento das pessoas, diminuindo o isolamento, principalmente nas áreas onde o presidente teve maior apoio, colocando em risco o contágio e reduzindo a eficácia das políticas implementadas pelos governadores e prefeitos.

O vírus chegou no Brasil muito depois do que em outros países. Havia tempo para planejar e coordenar políticas com o objetivo de minimizar os efeitos da pandemia na saúde e na economia. Pelas experiências que se observam em diversas partes do mundo, os dirigentes políticos que seguem uma visão negacionista nessa pandemia deverão pagar um preço político alto. As vidas perdidas pela falta de ações efetivas nunca serão recuperadas.

*Tiago Cavalcanti é professor de Economia da Universidade de Cambridge e da FGV-SP.

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