• Um mau militar – Editorial | O Estado de S. Paulo
As Forças Armadas desfrutam do merecido apreço da maioria dos brasileiros, como há tempos atestam pesquisas de opinião. Merecido porque, desde a redemocratização do Brasil, souberam manter-se à margem do desgastante processo político, limitando-se às suas elevadas funções constitucionais. “Se a política entra pela porta da frente de um quartel, a disciplina e a hierarquia saem pela porta dos fundos”, disse, com razão, o vice-presidente Hamilton Mourão, general da reserva, ao comentar o movimento grevista da Polícia Militar do Ceará, em março passado.
O comportamento do presidente Jair Bolsonaro, contudo, vem impondo um complexo desafio para as Forças Armadas. O presidente Bolsonaro, ele mesmo um oriundo dos quadros do Exército, cercou-se de militares em seu gabinete, alguns inclusive na ativa – como o ministro da Secretaria-Geral de Governo, general Luiz Eduardo Ramos.
Tornou-se inevitável, assim, uma associação entre a imagem das Forças Armadas e a do governo, mesmo que a maioria dos militares que hoje servem ao presidente seja da reserva e mesmo que a cúpula das Forças reafirme constantemente seu distanciamento da cozinha política do Palácio do Planalto. Mais do que isso: em muitos momentos, Bolsonaro se refere às Forças Armadas como “as nossas Forças”, modo nada sutil de indicar uma unidade de pensamento e ação entre ele e os quartéis.
No domingo passado, em mais um de seus comícios de caráter golpista, o presidente foi ainda mais longe e, depois de dizer que “acabou a paciência” em relação àqueles que, seguindo a Constituição, impõem limites a seu poder, declarou que “as Forças Armadas estão do nosso lado”.
Com isso, o presidente Bolsonaro explicitamente tenta vincular seu governo às Forças Armadas e, pior, em oposição ao Judiciário e ao Congresso – cujo fechamento a militância bolsonarista defende dia e noite, estimulada pela retórica agressiva de seu líder. Ante o mal-estar causado pelas declarações autoritárias de Bolsonaro, o Ministério da Defesa teve de emitir uma nota em que afirma que “Marinha, Exército e Força Aérea são organismos de Estado” – o que seria uma platitude se o presidente não fosse Jair Bolsonaro, que confunde o Estado com o quintal de sua casa.
Bolsonaro cercou-se de militares na presunção de que estes lhe dedicariam absoluta lealdade, à moda dos quartéis. Essa exigência ficou clara com a demissão, em junho do ano passado, do general Carlos Alberto dos Santos Cruz, então ministro da Secretaria-Geral de Governo, depois que este ousou atravessar o caminho do vereador Carlos Bolsonaro, filho do presidente e eminência parda do regime. O episódio serviu para mostrar aos demais ministros, inclusive os militares, que ninguém no governo pode colocar os interesses de Estado acima dos interesses do clã Bolsonaro.
Assim, os militares que aceitaram cargos no governo, tidos como os “adultos na sala”, isto é, aqueles que temperariam o comportamento explosivo e errático do presidente, tornaram-se instrumentos de Bolsonaro em seu projeto autoritário de poder. O passo seguinte, no roteiro bolsonarista, é enredar as Forças Armadas.
Certamente é do mais absoluto interesse dos comandantes militares do País preservar a imagem de respeito e dedicação à Constituição, sem falar nos princípios civilizatórios. Se assim é, urge deixar claro que um presidente que ataca a imprensa diariamente – e manda jornalistas calarem a boca, como fez ontem com duas repórteres que insistiram, ora vejam, em lhe fazer perguntas – não representa os valores dos quartéis; urge deixar claro que Bolsonaro, ao desdenhar seguidamente dos mortos na pandemia de covid-19, agride princípios humanitários compartilhados pelos militares; urge deixar claro que tratar os Poderes Judiciário e Legislativo como inimigos e estimular manifestações golpistas, como fazem Bolsonaro e os bolsonaristas a todo momento, ofende a ordem democrática que os militares juraram respeitar; urge, por fim, deixar claro que as grosserias de Bolsonaro demonstram que ele nada aprendeu nas aulas sobre respeito e civilidade ministradas nas escolas militares. É, no modelo do general Ernesto Geisel, “um mau militar”, que, é bom não esquecer, deixou pela porta dos fundos esta honrada profissão.
• Coalizão frágil – Editorial | O Estado de S. Paulo
Acuado pelas denúncias feitas por seu ex-ministro da Justiça e da Segurança Pública, Sérgio Moro, premido pela contenção a seus avanços autoritários imposta pelo STF e preocupado com a queda de sua popularidade, o presidente Jair Bolsonaro resolveu quebrar uma promessa de campanha e passou a negociar apoio parlamentar em troca de cargos na administração pública federal. No curso de toda a campanha eleitoral de 2018, tal prática foi fortemente condenada pelo então candidato, que a associava ao que de pior havia na “velha política”.
Eleito, Bolsonaro reafirmou o compromisso de montar seu Ministério e estabelecer uma relação institucional com o Congresso com base na negociação com agrupamentos suprapartidários que defendem interesses específicos de setores da sociedade – as chamadas “frentes temáticas” –, e não com bancadas ou parlamentares estanques, menos coesos e mais suscetíveis às barganhas pouco republicanas do mau varejo político. A intenção do presidente de reparar as falhas do chamado presidencialismo de coalizão foi elogiada nesta página (ver editorial Bom sinal, publicado em 22/11/2018). No entanto, ao fim e ao cabo, Jair Bolsonaro mostra que sua alma de deputado do baixo clero fala mais alto do que a palavra empenhada pelo presidente da República.
Temendo a abertura de um processo de impeachment, é disso que se trata, o presidente franqueou acesso à máquina federal aos apadrinhados de caciques políticos há muito envolvidos em transações tenebrosas, alguns deles já condenados pela Justiça por graves crimes. Com olhos voltados para os cerca de 200 votos de parlamentares que fazem parte do chamado “Centrão” na Câmara dos Deputados – são necessários 172 votos para barrar a abertura de um processo de impeachment –, Bolsonaro parece disposto a dar o que lhe for pedido em troca de sustentação congressual. Pelo que foi noticiado, até uma reforma ministerial não está descartada. O presidente cogita mandar para o espaço, com perdão do trocadilho, o ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), o astronauta Marcos Pontes. Em uma eventual reforma ministerial, o MCTIC poderá ser dado ao PSD, partido que já comandou a pasta em governos passados. Fala-se ainda da recriação do Ministério do Trabalho, que ficaria a cargo do PTB, que por décadas foi seu donatário. Além de Ministérios, fazem parte do “toma lá dá cá” diretorias de bancos regionais, agências reguladoras e empresas estatais que administram orçamentos bilionários.
É importante deixar claro que a formação de uma coalizão de governo não é um mal em si, como Bolsonaro tentou fazer crer ao longo de sua bem-sucedida campanha à Presidência. A partilha de cargos – e poder – entre partidos alinhados ao grupo vencedor de uma eleição é legítima em qualquer democracia representativa, desde que, evidentemente, esta relação seja pautada por afinidade programática e espírito público. Ademais, dada a peculiaridade do sistema político-eleitoral brasileiro, dificilmente um presidente consegue se eleger tendo a seu favor uma confortável maioria parlamentar. Este fato indesviável impõe a necessidade de negociação entre o chefe do Poder Executivo e lideranças do Poder Legislativo de modo a permitir a construção de uma agenda de consenso, cujo norte há de ser sempre o interesse nacional.
O problema é que o presidente Jair Bolsonaro agora se engaja na formação de uma base de apoio parlamentar nos piores termos possíveis e por razões que podem ser tudo, menos um genuíno propósito de aprovar projetos de interesse da Nação.
Jair Bolsonaro não é o primeiro presidente da República que quebra uma promessa de campanha e seguramente não será o último. Mas sua tentativa de cooptação parlamentar é particularmente curiosa porque desmente e renega o “mito” do grande saneador da política brasileira e impõe a seus defensores um pesado exercício de equilibrismo retórico para explicar a justeza de uma prática até então ferozmente rechaçada.
Nos moldes em que vem sendo construída, a coalizão pretendida por Bolsonaro é frágil e poderá frustrá-lo. O País conhece esta história.
• Os limites de um presidente – Editorial | O Estado de S. Paulo
Ao criticar decisões do Legislativo e do Judiciário que lhe desagradam, o presidente Jair Bolsonaro raramente traz argumentos relativos ao mérito da questão. Em geral, a fala de Bolsonaro consiste em denunciar uma suposta subtração dos poderes do presidente da República. Nessas críticas, nota-se um clima de perseguição pessoal. As decisões do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF) contrárias ao governo federal são vistas como ofensas pessoais por Jair Bolsonaro. Eleito com uma campanha antissistema, ele seria perseguido continuamente pelo tal “sistema”, interessado em não deixá-lo governar.
Em junho de 2019, por exemplo, Bolsonaro criticou uma lei aprovada pelo Congresso sobre nomeação de diretores de estatais (Lei 13.848/19), questionando: “Pô, querem me deixar como a rainha da Inglaterra?” Na ocasião, o presidente apôs vetos a alguns trechos da lei, que foram mantidos pelos parlamentares.
Neste ano, Bolsonaro intensificou o discurso de que o Legislativo e o Judiciário o perseguem. “Chegamos no limite”, disse o presidente no domingo, avisando que “daqui para frente não tem mais conversa”. Referia-se à nomeação do diretor-geral da Polícia Federal (PF). Na semana anterior, decisão liminar do ministro Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação de Alexandre Ramagem para a chefia da PF, por entender que a escolha presidencial contrariava os princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do interesse público. Nesse caso, não houve nenhuma usurpação das competências do presidente da República. A decisão liminar apenas reconheceu que o exercício dessas competências deve respeitar a Constituição.
Se estivesse seguro de que a nomeação de Ramagem cumpria os requisitos constitucionais, o presidente Bolsonaro poderia tê-la defendido perante o plenário da Corte. Em tese, a Corte poderia adotar um entendimento diverso do proferido pelo relator em sua decisão liminar. No entanto, antes que o processo fosse analisado pelo plenário do STF, Bolsonaro revogou a nomeação de Ramagem, em clara manifestação de que continuava exercendo suas competências presidenciais. Mesmo assim, valeu-se do caso para atacar o Supremo.
Observa-se uma manipulação da linguagem no modo como o presidente Bolsonaro se refere à Constituição. “Não só exigiremos, faremos cumprir a Constituição”, disse Bolsonaro no dia 3 de maio. No entanto, o tal cumprimento da Carta Magna defendido por Bolsonaro ignora os limites que a própria Carta delineia. Ou seja, em vez de ser uma defesa da Constituição, o discurso equivale a negar o texto constitucional.
É uma exigência do Estado Democrático de Direito, tal como definido pela Constituição de 1988, que o Judiciário e o Legislativo exerçam controles sobre o Poder Executivo. Um exemplo é o mandado de segurança, remédio para proteção de direito líquido e certo em caso de ilegalidade ou abuso de poder. Vale lembrar que também o Executivo exerce controles sobre o Legislativo; por exemplo, apondo vetos num projeto de lei, aprovado pelo Congresso.
Ao classificar como abuso de poder qualquer decisão que lhe imponha freios, Jair Bolsonaro ignora a Constituição, que define limites claros a todos os poderes. E o pior é que, com frequência, Bolsonaro faz essa distorção da Constituição apelando a um populismo barato. Em seu discurso, decisões do Legislativo e do Judiciário que ele entendeu serem contrárias ao governo federal são apresentadas como manobras para minar o mandato que ele recebeu do povo. Em sua tresloucada lógica, não basta transformar em afronta pessoal decisões que simplesmente fazem cumprir a Constituição. Bolsonaro as qualifica como antidemocráticas.
O voto que Bolsonaro recebeu nas urnas em 2018 deu-lhe o cargo de presidente da República, a ser exercido dentro das regras e limites previstos na Constituição. Por isso, na cerimônia de posse o presidente eleito jura solenemente cumprir a Constituição. Nem o voto nem a Constituição deram-lhe poderes absolutos, o que significa que é do normal funcionamento da democracia que seus atos estejam sujeitos ao controle de constitucionalidade e de legalidade. O presidente da República não é um monarca absoluto.
• STF precisa afastar risco do ‘apagão estatístico’ – Editorial | O Globo
Julgamento pode dar bases seguras para IBGE retomar seu trabalho na epidemia e manter fluxo de dados
A insegurança jurídica e também política, uma das mazelas brasileiras, chega a prejudicar até mesmo o trabalho do IBGE, sob o risco de não poder continuar a coletar dados neste momento especial do país e do mundo, devido à contestação de medida provisória baixada pelo governo para permitir que o instituto se mantenha em campo na realização de suas pesquisas. Não mais de forma física, por pesquisadores, impossibilitados de circular devido à Covid-19 e ao isolamento social, mas por telefone. Para isso, a MP permitiu o acesso do instituto aos dados das operadoras telefônicas, enquanto perdurar a epidemia.
Porém, no país das fakes news — inclusive com a participação de gente do governo —, e de variados outros golpes digitais, a MP levou a uma reclamação judicial pluripartidária (PSB, PSOL, PCB e PSDB) e da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI), junto ao Supremo, contra a medida provisória, sob a alegação de invasão de privacidade. Impede-se a utilização dos dados das operadoras, onde estão número do telefone, nome do assinante e endereço, informações que os pesquisadores do IBGE sempre tiveram, e que são protegidos de quebra de sigilo pela Constituição e pela Lei das Estatísticas.
Sinal desses tempos de insegurança — com um governo que não sabe onde acaba seus limites e começa os do Estado —, a ADI mereceu da juíza Rosa Weber uma liminar, prevista para ser julgada hoje pelo plenário virtual da Corte.
A impossibilidade momentânea de o instituto poder continuar trabalhando fez com que nove ex-presidentes do IBGE alertassem em carta aberta para os graves danos caso, por exemplo, a Pesquisa por Amostra de Domicílios (Pnad) seja interrompida, fonte de informações sobre áreas vitais para os governos e a sociedade: emprego, condições de vida da população, educação, entre outras questões.
Daí o uso do termo “apagão estatístico” para designar o que poderá acontecer caso o Supremo, apesar de todas as garantias legais e da fé pública do IBGE, uma instituição de 1934, considere que a ADI está correta.
Não seria aceitável que o IBGE sequer pudesse executar neste momento uma pesquisa domiciliar pedida pelo Ministério da Saúde sobre a Covid-19, para ajudar no planejamento da saída do isolamento social, que não pode ocorrer de forma abrupta, precisa ser calibrada por regiões, cidades e até bairros, a depender de como o coronavírus atingiu cada parcela da população.
É compreensível a preocupação com a privacidade, mas certamente há formas de ela continuar a ser preservada, o que é do interesse de todos, mas dando-se condições de o IBGE usar arquivos digitais de concessionárias de serviços públicos para suas pesquisas e não apenas nesta crise, pois esta é uma tendência mundial no levantamento de informações desse tipo.
• Queda nas taxas de isolamento impõe lockdown como alternativa – Editorial | O Globo
Sem conseguir atender à demanda crescente de doentes, governos começam a ampliar restrições
Por ter tido a oportunidade de observar a evolução da pandemia do novo coronavírus em outros países, antes que ela aportasse por aqui, o Brasil começou a adotar relativamente cedo medidas de contenção. A principal delas é o isolamento das pessoas que podem ficar em casa, até agora a única forma de frear a exponencial disseminação da doença, já que ainda não há vacinas ou remédios com eficácia comprovada contra a Covid-19. Seria um equívoco dizer que essas restrições não estão dando resultado, pois, segundo especialistas, o número de mortes seria maior se nada tivesse sido feito. Há exemplos dentro e fora do país.
Porém, medidas para flexibilizar o isolamento tomadas por estados e prefeituras muito antes da hora, em plena fase de aceleração da epidemia, e a queda na adesão à quarentena estão pressionando as redes pública e privada, que em vários estados já se encontram em colapso ou estão no limite. Por isso, governadores e prefeitos começam a se dar conta da necessidade de radicalizar o isolamento, decretando o lockdown (bloqueio total das atividades não essenciais), como fizeram, ainda que tardiamente, países da Europa que estão conseguindo controlar a epidemia.
Ontem essas restrições severas entraram em vigor na Grande São Luís, no Maranhão, primeiro estado brasileiro a adotar a prática, cumprindo determinação da Justiça. A decisão teve por base um estudo da Fiocruz que aponta o Maranhão como a unidade da Federação onde o número de mortes cresce mais rapidamente —já são mais de 4.500 casos e cerca de 270 óbitos.
No Ceará, que vive situação de caos na saúde devido à pandemia do novo coronavírus, a capital, Fortaleza, também adotará o lockdown. As cidades de Manaus, no Amazonas, e Belém, no Pará, seguem pelo mesmo caminho.
No município de São Paulo, que concentra o maior número de mortes por Covid-19 no país, a prefeitura, embora não use o termo lockdown, já faz bloqueios em vias importantes para desestimular a circulação — exceção feita, obviamente, aos serviços essenciais.
Diante da queda nas taxas de isolamento, não resta outra alternativa aos governos que não o lockdown. Menos gente nas ruas hoje significará menos pacientes procurando hospitais daqui a 15 dias. O número de doentes cresce de forma exponencial, e não há médicos, leitos de UTI e respiradores para dar conta dessa demanda. O drama de pessoas que morrem nas filas de espera está exposto diariamente na mídia. De nada adianta atacar o isolamento, como faz sistematicamente o presidente Jair Bolsonaro, embora o seu ministro da Saúde, Nelson Teich, defenda a quarentena. Quanto antes o Brasil conseguir controlar a epidemia, mais rapidamente poderá executar o plano de volta à normalidade.
• Sem saídas mágicas – Editorial | Folha de S. Paulo
Emissão de moeda e uso maciço de reservas criam riscos; há como baixar juros
A pandemia impõe a tarefa de lidar de modo urgente com uma crise de características tão desconhecidas quanto, provavelmente, de dimensão inédita na história documentada. Exige ideias ambiciosas, mas não desmedidas.
A consternação, o medo e a ansiedade, decerto justificados, não podem dar lugar ao pânico e a tentação de soluções salvadoras, ainda menos quando faltam implementar providências mais imediatas e planejar o futuro.
Nas semanas que correm, ouvem-se ideias tais como a intervenção do Banco Central no financiamento do governo —“imprimir dinheiro”— e o saque maciço das reservas em dólar para reduzir dívidas ou bancar investimentos.
É bem-vindo, claro, o debate de alternativas, mas cumpre qualificá-lo. As opções em pauta dependem de circunstâncias e objetivos.
Pode ser que, em dado momento, o Banco Central venha a comprar títulos de longo prazo do Tesouro Nacional, a fim de reduzir as taxas de juros de vencimento mais distante. Assim talvez se permita reduzir os custos de novos déficits e dívidas. No limite e na prática, o BC acabaria por financiar o Tesouro por meio de emissão de moeda.
Agora, no entanto, mesmo a taxa básica de curto prazo, a Selic, ainda está em ora elevados 3,75% ao ano. A discussão de medidas heroicas do BC não pode ocorrer antes da redução da Selic.
Outra tentação salvadora diz respeito ao uso de reservas internacionais, os ativos em moeda forte sob a guarda do BC. O montante delas caiu de cerca de US$ 383 bilhões para os presentes US$ 339 bilhões em um ano, devido a intervenções no mercado por parte da autoridade monetária na tentativa de enfrentar momentos de disparada das cotações do câmbio.
A venda de dólares diminui a dívida bruta do governo, tudo mais constante. Por quase todas as medidas de adequação e nas comparações internacionais, as reservas permanecem em nível alto; o custo de mantê-las, porém, baixou muito.
Nos cálculos da Instituição Fiscal Independente, vinculada ao Senado, esse custo (decorrente dos juros dos títulos emitidos para a compra de dólares) chegou a 2,7% do Produto Interno Bruto em 2015, caindo para perto de 0,3% em 2019.
Altíssimo, porém, é o desconhecimento das necessidades financeiras externas do Brasil em um mundo conturbado. O país precisará de mais ou menos divisas próprias a depender do nível de organização macroeconômica que conseguirá manter. Ficar no limite de segurança é imprudente em momento de tamanhos riscos e incertezas.
A hora é de implementar medidas de preservação possível de empregos e empresas; de repensar com mais realismo e precisão a trajetória da política macroeconômica, de juros e contas públicas, mirando a retomada da atividade.
Esse deve ser o esforço inicial, que começou mal e mal começou a ser realizado com competência.
• 'Lockdown' – Editorial | Folha de S. Paulo
MA estreia confinamento mais radical, e outros estados começam a seguir exemplo
Com quase todos os leitos estaduais de UTIs para o tratamento de casos de Covid-19 ocupados em São Luís, o Maranhão se tornou, nesta terça (5), o primeiro estado brasileiro a implementar o chamado “lockdown” —ou confinamento.
A medida drástica, um grau acima daquelas de distanciamento social que têm sido adotadas no país, valerá para a capital, além de outros três municípios da região metropolitana, e compõe o rol das ações preconizadas pelas autoridades sanitárias quando há risco de colapso do sistema hospitalar.
O fato de ter sido determinada por um tribunal levantou compreensíveis dúvidas sobre a competência do Judiciário para decidir tal questão —embora o bloqueio tenha sido de pronto acatado pelo governador Flávio Dino (PC do B).
Pelos próximos dez dias, estará proibida a movimentação de veículos particulares, salvo para compra de alimentos, transporte de doentes ou serviços de segurança. A circulação de pessoas ficará limitada, e aglomerações estão proibidas. Apenas atividades consideradas essenciais permanecerão funcionando —e sob controle.
Por mais transtornos que gere à população e à economia, o endurecimento das restrições sociais se afigura necessário diante do aumento galopante de mortes no Maranhão, assim como se deu na China e em diversos países europeus.
Estudo elaborado pela Fiocruz mostrou que o estado é o que apresenta hoje o maior ritmo de crescimento de mortes em decorrência da Covid-19. Lá, a quantidade de óbitos vem dobrando em média a cada cinco dias. Em situação também gravíssima se encontram Pará, Ceará e Pernambuco.
Com taxa de ocupação de suas UTIs acima de 90%, essas unidades da Federação se veem diante do risco de não terem, em breve, leitos disponíveis para tratar os casos mais graves. Não à toa, medidas restritivas foram endurecidas em capitais e municípios paraenses e, em menor grau, cearenses.
Tais medidas deveriam vir acompanhadas de um esforço de testagem em grande escala da população local, para monitorar os efeitos do confinamento e calibrar a velocidade de seu relaxamento —terreno em que todo o Brasil, lamentavelmente, ainda patina.
• Bolsonaro apela mais uma vez a militares contra democracia
O comportamento do presidente traz os piores augúrios
O presidente da República, Jair Bolsonaro, atua como um agente provocador e intensificou sua investida contra as instituições. O presidente passou a bater à porta dos quartéis, seguido por fanáticos que pedem a volta da ditadura. No dia 19 de abril, em frente ao Quartel General do Exército, em Brasília, o presidente disse que não iria “negociar mais nada” e que acabara a “era da patifaria”. No domingo foi reclamar das “interferências” dos outros Poderes: “Chegamos ao limite. Não tem mais conversa”. Em seguida, disse que as Forças Armadas estão do “lado do povo”.
Bolsonaro passou a apelar diretamente às Forças Armadas contra o Judiciário, o Congresso e a democracia. O ministro da Defesa, Fernando Azevedo, em uma já incômoda rotina, emitiu nota afirmando que os militares “estarão sempre ao lado da lei, da ordem, da democracia e da liberdade”. Bolsonaro não desistirá de tentar incluí-los em seus planos de destruir as instituições.
A conduta do presidente é a do confronto permanente. Após demitir Luiz Mandetta da Saúde em plena pandemia, cujo poder letal desacredita, e forçar a saída de Sergio Moro, da Justiça, Bolsonaro foi impedido de trocar o diretor-geral da Polícia Federal por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF. O Congresso já não lhe dava bolas - e vice-versa - e ambos são “interferências” das quais ele pretende se livrar.
A trajetória de Bolsonaro é clara e coerente ao longo do tempo. Recheou o governo de militares da reserva ou da ativa, denotando uma suposta identidade política da instituição com seu governo.
Analistas apressados disseram que eles estavam lá para domar o presidente, incutir-lhe sabedoria e evitar desastres. Um dos principais conselheiros seria o general da reserva Augusto Heleno, ministro do GSI, que parece ter desistido cedo da tarefa, se é que um dia ela lhe passou pela cabeça. Heleno acompanha o destempero de Bolsonaro e os outros ministros aquiescem. Bolsonaro vem em uma escalada de radicalismo exponencial, sem achatamento da curva.
O comportamento do presidente traz os piores augúrios. Antes da última provocação, de ter chegado “ao limite”, ele se reuniu com os ministros militares no Planalto, para, em seguida, animar seus fanáticos contra o Judiciário. Seria óbvio ligar a reunião e o ato, um desejo claro do presidente. Bolsonaro insistiu de novo em arrancar uma posição pública de apoio das Forças Armadas a seus delírios autoritários.
Há padrão na conduta dos ministros que vieram dos quartéis para o governo. O presidente desautorizou o quanto pôde seu ministro da Saúde sobre o isolamento social, e foi só Mandetta dizer que isto confundia os brasileiros para que considerassem isso motivo para demissão. Moro saiu do governo e acusou o presidente de tentar aparelhar a Polícia Federal, instituição envolvida em investigações envolvendo seus filhos. O presidente indicou um amigo da família, Alexandre Ramagem, para o cargo e Moraes do STF, anulou a nomeação, retirada depois. Para eles, houve “interferência”
Ontem, Bolsonaro, em cerimônia feita às pressas, quase clandestina, nomeou um homem de confiança de Ramagem, Rolando Souza, no comando da PF. Mal tomou posse, Rolando retirou Carlos Henrique de Oliveira da superintendência da PF no Rio, o objetivo do presidente. As intenções de Bolsonaro são claras e ele, se puder, faz o que deseja.
Há nuvens de fumaça lançadas para tirar a visibilidade dos episódios. Militares de alto comando teriam ficado ressabiados com a intromissão do STF. O vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que “existe uma questão de disputa de poder.... e uma pressão muito grande em cima do Executivo”. Mas são o presidente e seus filhos que saem em manifestações que agridem o STF e Congresso. O Judiciário usou suas prerrogativas.
As táticas de intimidação são conhecidas. O presidente força a barra contra quem atrapalha seus desígnios para, logo em seguida, “confidentes” alardearem que poderia ser muito pior. Há quem diga que Bolsonaro estava convencido a afrontar o STF e nomear Ramagem de novo. Teria sido “demovido”. E conseguiu o que queria.
As chances de reeleição de Bolsonaro se evaporam. Seu radicalismo indica exasperação. Só na cabeça de alguns lunáticos que o seguem há uma ameaça comunista a espreitar o país. Os militares dificilmente comprarão essa asneira. E para todos os efeitos, há um vice-presidente que, na caserna, não era indisciplinado.
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