- Folha de S. Paulo
Demos enorme realce a números que sabemos estarem errados
Todos os jornais deram com destaque que o Brasil ultrapassou a funesta marca de 50 mil mortos e 1 milhão de infectados.
Entendo perfeitamente a necessidade de transmitir para o público a dimensão da tragédia, especialmente quando as autoridades federais se empenham em diminuí-la, mas a iniciativa esconde uma contradição, que, penso, vale a pena explorar nesta coluna.
O problema básico é que demos enorme realce a números que sabemos estar errados, o que vai contra o ideal de precisão perseguido pela imprensa. Com efeito, dia sim, dia também, jornais publicam reportagens sobre o fenômeno subnotificação, que afeta tanto o total de infectados como o de óbitos.
No que diz respeito ao número de pessoas que já entraram em contato com o vírus, uma das melhores formas de estimá-lo são os inquéritos sorológicos, em que se testam os anticorpos de amostras representativas da população.
O estudo Epicovid-19 pretende fazer isso em nível nacional. Os resultados de sua segunda fase, com campo entre os dias 4 e 7 de junho, davam que 2,6% da população pesquisada em 83 municípios já haviam sido infectados. Extrapolando isso para o país, no início do mês corrente, o Brasil já tinha mais de 5,4 milhões de contaminados. Para as mortes, um bom jeito de calcular a subnotificação é a partir do excesso de óbitos verificados em certas categorias em relação a uma média de anos anteriores.
Marcelo Soares, num levantamento para O Globo, acaba de mostrar que podemos atribuir à Covid-19 mais 21 mil dos óbitos por SRAG (síndrome respiratória aguda grave) que foram registrados sem identificação do agente etiológico. E as mortes por SRAG são só parte da história.
Quadros respiratórios são a principal apresentação grave da Covid-19, mas não a única. Uma fatia dos óbitos por vasculopatias, que incluem infartos, AVCs, TEPs e insuficiências renais, também pode ser creditada ao vírus. A moral da história é que, a crer na própria imprensa, tanto a baliza de 50 mil mortos como a de 1 milhão de infectados foram atingidas um bom tempo atrás, ainda que não saibamos precisar quando. Por que, então, tanto destaque agora?
Minha hipótese é que fomos vítimas de um duplo viés humano. Nossa espécie tem fascinação tanto por contagens como por números redondos. O sinal mais eloquente de que uma criança se assenhorou da lógica que preside o sistema numérico surge quando ela se propõe a contar até cifras cada vez maiores: cem, mil... Não perdemos esse hábito na maturidade.
Sempre que um evento importante como uma Olimpíada está para ocorrer, uma das primeiras providências das autoridades é instalar em praça pública uma espécie de relógio que faz a contagem regressiva de quantos dias faltam para o início dos jogos. Nosso encanto com números redondos é ainda mais forte.
Apesar de todas as passagens de ano serem iguais e não significarem objetivamente nada, costumamos celebrar as mudanças de século com muito mais festividades do que as de anos regulares. E, como também somos uma espécie que adora batalhas em torno de símbolos, conseguimos transformar irrelevâncias em disputas.
Leitores com mais de 35 anos se lembrarão da celeuma em torno da comemoração do milênio, se deveria ser em 2000, como queriam os redondistas, ou em 2001, como cobravam os puristas. Essa veia polêmica nem sempre é divertida. Ela está na base da polarização que tanto nos atrapalha agora, quando precisaríamos dar uma resposta coordenada e firme à pandemia.
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