terça-feira, 23 de junho de 2020

Míriam Leitão - Direito em tempo da pandemia

- O Globo

O ministro Luiz Fux negou que o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha tirado do governo federal a responsabilidade pelas políticas de combate à pandemia. “Não o eximimos de responsabilidade, pelo contrário, reforçamos a competência dos executivos”, disse. “O Supremo não exonerou o executivo federal de suas incumbências.” Isso derruba a tese do presidente Jair Bolsonaro de que o STF entregou o assunto a estados e municípios. Ele tem dito isso tantas vezes que não pode ser apenas confusão de interpretação, mas sim estratégia para fixar uma versão.

Num evento feito por este jornal, o ministro Fux explicou que, quando a Constituição diz que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado, ela o faz de forma genérica. O que o STF fez foi fortalecer “os executivos” num estado federativo como o brasileiro, ou seja, os três níveis administrativos. O tribunal reconheceu o direito de os estados e os municípios estabelecerem as medidas protetivas, até porque ouviu os especialistas que dizem que distanciamento social e isolamento, em alguns casos, são necessários, mas isso não tirou poderes nem deveres do governo federal:

— A União continuará com as suas obrigações, mas o STF tem o dever nesses momentos de pandemia de evitar que aquelas pessoas que são anticiência possam violar um dos direitos fundamentais que é o da saúde. O que não é razoável, o STF intervém.

O debate de ontem reuniu também, além do ministro Fux, os desembargadores Cláudio de Mello Tavares, presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, e José da Fonseca Martins, presidente do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região, sob o instigante tema do papel do judiciário na retomada depois da pandemia. Cláudio Tavares lembrou que o Judiciário fez uma transformação digital rápida e a Justiça não parou. Está agora diante de inúmeras questões que sabem que desembarcarão nos tribunais:

— Com a nova realidade, teremos também uma nova demanda. Em relação à recuperação judicial das empresas, de despejo por falta de pagamento, de pedidos de revisão dos valores de aluguéis, ações sobre mensalidades escolares e de valor a pagar em planos de saúde.

Fux sugere que o melhor a fazer é estimular a saída extrajudicial. O ministro acha que este é o momento em que tem que haver o diálogo entre o Direito e a Economia. Defendeu a análise econômica do Direito que parte do pressuposto de que se houve uma mudança drástica nos termos dos contratos que ele seja mudado.

— O melhor que podemos oferecer é segurança jurídica. Há uma enorme previsão de judicialização. Nós recebemos, no STF, 1800 ações constitucionais para debater a pandemia. Então é preciso que a jurisprudência ocupe esse espaço. Quando houver surpresa jurídica, onerosidade excessiva, os juízes podem se sentar com as partes para mudar a orientação do contrato. Esse é o tempo do online dispute resolution. O Brasil consagra uma solução teórica belíssima, a teoria da imprevisão. Os pactos foram feitos para serem cumpridos, desde que as coisas se mantenham tal como eram.

O juiz José Martins lembrou que no TRT transitam 25 mil pessoas, por isso a reabertura será muito cuidadosa e com protocolos que foram estabelecidos depois de ouvir a Fiocruz:

— Ainda estamos em plena pandemia, há uma quantidade absurda de contaminações e com subnotificação. Mais de 50 mil óbitos, isso tudo com uma crise de natureza política.

Ao mesmo tempo, haverá um volume impressionante de trabalho novo, após a pandemia, porque as MPs que reduziram salário, jornada ou suspenderam contrato têm prazo para terminar. Martins acha também que no pós-pandemia permanecerá muito do que houve de migração forte para o home office e a Justiça do Trabalho terá que lidar com isso.

Perguntei ao ministro Fux sobre a forma de superar a crise institucional. Ele acha que ela é artificial:

— A Constituição foi sábia em estabelecer a ordem dos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário. O Poder Judiciário é o único com aptidão para rever os atos dos demais poderes. O fato de o Poder Judiciário submeter ao seu escrutínio atos de outros poderes não é crise institucional. Os juízes têm que ser independentes e podar atos inconstitucionais que venham de qualquer poder. Fazer disso uma crise institucional é criar algo artificial a pretexto de outros objetivos, que não a obediência às leis.

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