Juízes
que fazem política fracassan duas vezes, como políticos e como magistrados
Amy Coney Barrett, a juíza indicada à Suprema Corte dos EUA, é uma originalista. Os fundamentalistas religiosos querem que as sociedades se curvem aos textos sagrados “tal como foram escritos”.
Os
juízes originalistas são fundamentalistas constitucionais: ignoram a dinâmica
histórica em nome de um literalismo absoluto. Mas, paradoxalmente, a
confirmação de Barrett descortina a possibilidade de um necessário
reordenamento da democracia americana. Além disso, ajuda o Brasil a
diagnosticar a moléstia que debilita o STF.
Na
ponta oposta dos originalistas encontram-se os neoconstitucionalistas,
representados no STF por Luís Roberto Barroso. A corrente jurídica acredita
que a norma formal (o que está escrito) deve se subordinar à norma axiológica
(os princípios morais genéricos inspiradores da Constituição).
O
juiz converte-se, a partir daí, em intérprete livre do texto legal, com a
prerrogativa de infundir-lhe significados que contrariam seus significados
explícitos. Abre-se a autopista do ativismo judicial: o sopro purificador do
juiz-ativista produz legislação, ocupando a cadeira dos parlamentares.
A
maioria dos juízes situam-se em algum ponto intermediário entre os polos extremos. Ruth
Bader Ginsburg, a juíza icônica que logo será substituída por Barrett,
tentava equilibrar a letra da lei com os imperativos da mudança social. Ela
defendeu o direito ao aborto, proclamado no célebre julgamento do caso
Roe vs. Wade (1973). Contudo, anos atrás, explicou como aquela decisão da
Suprema Corte provocou resultados perversos.
Na
hora de Roe vs. Wade, a opinião pública americana inclinava-se para o direito
ao aborto. Mas, como o impasse foi solucionado pelos juízes, não pelo
Congresso, descortinou-se o terreno para uma eficaz propaganda conservadora. Os
grupos antiaborto acusaram a corte de impor ao povo cristão a vontade de uma
elite mundana, apóstata, sem Deus.
A
campanha teve sucesso, cindindo a sociedade quase ao meio e transformando o
tema em fonte de radical polarização partidária. Ginsburg teria preferido uma
decisão política, pela via parlamentar, como na Itália, em 1978, e na Irlanda,
em 2018.
A
originalista Barrett alinha-se à proteção incondicional do direito à posse e
porte de armas pois lê a Segunda Emenda “tal como foi escrita”. A emenda é de
1791, na esteira da Guerra de Independência, num país de proprietários de
escravos e de colonos que se espraiavam por terras indígenas. Na época,
inexistiam as armas automáticas capazes de ceifar dezenas de vidas em minutos.
De fato, a juíza literalista subverte o espírito da lei ao interpretar a emenda
como um direito ilimitado.
Já
o ativismo do jurista iluminado submete a nação à sua vontade, circundando as
dificuldades inerentes à democracia representativa. Roe vs. Wade forneceu os
pretextos para uma reação populista de longo curso que intoxicou a política
partidária dos EUA.
Hoje,
pelas mãos de Donald Trump, emerge uma Suprema Corte fundamentalista,
impermeável às demandas de reforma social. Há um lado positivo: os defensores
das mudanças devem enfrentar a batalha na arena política e eleitoral,
convencendo a maioria da justeza de suas teses.
A
lição americana vale, de outro modo, para o Brasil. “In
Fux we trust”: o ativismo judicial manifestou-se pelo alinhamento
automático de ministros do mais alto tribunal à agenda política do Partido da
Lava Jato.
Isso
cobrou um preço institucional devastador. De um lado, semeou o chão onde nasceu
o governo Bolsonaro. De outro, conduziu o STF a uma espiral entrópica que o
fragmentou em 11 ilhas fortificadas engajadas em tortuosas guerras de
guerrilha.
Juízes
que fazem política fracassam duas vezes, como políticos e como magistrados.
Ginsburg não foi grande por defender o aborto, mas por saber a diferença entre
a cadeira do juiz e a tribuna do parlamentar.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
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