quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Ricardo José de Azevedo Marinho* - Você conhece o Partido Brasileiro?

Em memória de Ana Carla Magni (1972-2021)

Sobre as efemérides de 2022 dedicadas ao nascimento do Brasil devesse acrescentar a perseverança e a resistência do Partido Brasileiro (que contou, entre outros, com Cipriano Barata [1762-1838], Muniz Tavares [1793-1876], que haviam participado da Revolução Pernambucana de 1817 e do Padre Diogo Antônio Feijó [1784-1843]) frente à proposta da recolonização do Brasil apresentada nas sessões das Cortes de Lisboa em 1821, pois foi ali que os nativos revolucionários desenvolveram uma das nossas virtudes ao dotar o sentimento da nacionalidade brasileira de uma pluralidade e nunca ter concedido, e não podia realmente conceder, uma unívoca definição de gênero, étnica ou de raça. O que mais se aproximava de sua natureza era o entusiasmo pelo junto e misturado das múltiplas identidades amalgamadas ou não na miscigenação e noutras modalidades de mestiçagens, mas que no final eram as brasileiras e brasileiros que estavam lá e aqui e ponto.

Em parte pelo mito - antigo - e pela realidade - bem mais recente - da miscigenação e mestiçagens no Brasil (de Gilberto Freyre [1900-1987]) e em alguns outros países ibero-americanos, especialmente no Mexico (de José Vasconcelos Calderón [1882-1959]), no Peru (de José Carlos Mariátegui [1894-1930]) e no Equador (de Alfredo Pareja Díez-Canseco [1908-1993], a nacionalidade brasileira e de outras nações da região nunca tiveram uma conotação única de gênero, etnia ou raça que outras sociedades reivindicam, seja desde sua origem ou adquirindo ao longo do tempo.

Isso está começando a sofrer ataques no Mexico, Peru, Equador e Brasil. No Brasil, não tanto pela quantidade de disparates que temos vivido por conta do identitarísmo de um lado e pelo resultado eleitoral de 2018 com Bolsonaro de outro, onde ambas as manifestações desejam ver pelas costas o centenário do Partido Brasileiro nesse segundo ano pandêmico de 2021 e pela sua ausência de comemorações agora e de sua projeção para 2022, que acabam por anunciar em essência de que nada há a comemorar e os subtextos esdrúxulos que acompanharão essas posturas. Por enquanto, essas manifestações são algo marginal e provavelmente também o serão de curta duração. Se Bolsonaro e os candidatos do identitarísmo forem derrotados em 2022, isso não será mais do que um fenômeno passageiro ou um breve pesadelo que felizmente terminará quando todos nós acordarmos.

Mas não vamos nos enganar. Algo de conotação étnica e ou racial na nacionalidade brasileira começa a emergir, como em outros países ibero-americanos, com governantes semelhantes. Não deve ser silenciado ou escondido. O fenômeno não é muito diferente do que aconteceu, por exemplo, na França nos últimos tempos. Muitos intelectuais e políticos franceses ficaram alarmados, ou mesmo angustiados, com a chegada ao país do Iluminismo de estranhas importações da academia norte-americana. Não é tanto sobre o Me Too, que é tão válido e atual na França quanto nos Estados Unidos da América, ou qualquer outro país. Referimo-nos antes aos cultos dos identitarísmos, às tentativas de mudar o texto e a gramática francesas para acomodar etnias, raças, gêneros ou outras aspirações ou demandas e, acima de tudo, às diferentes formas de reagir a certas presenças do Islã, por um lado, inegáveis na França, e ao islamismo radical, tão existente e alarmante por outro.

Houve um tempo em que era a academia norte-americana que importava conceitos e teorias de Paris. Talvez primeiro Althusser e Lacan, depois Foucault e Derrida, fizeram fortuna nas grandes universidades dos Estados Unidos da América (e não só por lá), contribuindo em muitas abordagens com construção de conhecimentos extraordinários - ver os pontos de Foucault sobre a prisão, a clínica, a medicina, a sexualidade, entre outras dimensões. Agora é o contrário, mas a qualidade do fluxo reverso não é necessariamente a mesma.

Começa a surgir no Brasil um sentimento que deve preocupar a todos nós. Alguns brasileiros e brasileiras seriam menos brasileiras e brasileiros do que outros, e não porque sejam do Norte ou do Sul do país, porque são ricos ou pobres, porque são migrantes ou de comunidades dos povos isolados como bem pontuou Sebastiao Salgado, mas porque são pardos, mestiços, miscigenados e não identitários, numa palavra, brasileiras e brasileiros. Haveria pelo menos dois tipos de brasileiros e brasileiras: os verdadeiros e verdadeiras e os demais. Isso, além de terrivelmente perigoso, põe em causa um suposto fundamentalismo de identitarísmos à nacionalidade brasileira, com toda a mitologia que se deseja, banindo ad absurdum a miscigenação e a mestiçagens. Sabemos que, essa realidade, pode ter tido um uso político com um que de falso e, talvez, até mesmo tardiamente. Também sabemos que, como uso mítico, tem sido extraordinariamente útil, certamente, para tentar exercer uma forma de dominação doce e poder açucarado, uns dos outros. Mas foi isso que nos permitiu coexistir no que começou a se delinear como nação no final do século XIX ou no início do século XX, em um país que tinha Estado, mas não tinha absolutamente nada como uma Nação. Como diz lucidamente Antonio Risério, é preciso ter cuidado com isso, porque, por mais complexa que tenham sido a miscigenação e a mestiçagem (e o foram como sabemos), é a principal história inclusiva que existe entre nós desde quando nascemos e passamos a existir.

1 de setembro de 2021

*Professor da Unyleya Educacional e do Instituto Devecchi.

 

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