Folha de S. Paulo
Tribunal deveria cumprir seu próprio 'marco
temporal' para julgar
A democracia brasileira precisa de um marco
temporal. Não a tese jurídica
que estabeleceu dia certo para atribuir direito territorial de povos
originários, tese estranha à Constituição de 1988 e aos debates
constituintes.
Falta à democracia brasileira um marco
temporal para o STF tomar decisões. Não só um prazo razoável, mas a certeza de
que, anunciada a pauta, não promoverá adiamentos contados em números de meses
ou anos, como de costume. O STF não pode dizer que aprecia segurança jurídica
se não oferece nem isso e se acomoda ao "devo,
não nego, julgo quando quiser".
Nesta quarta-feira (1º) a corte começou
a julgar mais um de seus casos históricos. Terá a chance de
orientar a promessa constitucional de demarcação de terras indígenas, que
acumula 28 anos de atraso (Constituição pedia que se encerrasse em cinco anos).
O caso chegou
ao STF em 2016 e questiona aplicação, a outras demarcações
territoriais, de critério construído no caso Raposa Serra do Sol, de 2009. Pautado
para 2020, foi adiado sem maiores explicações.
Agora, corre risco de novo adiamento em
função das ameaças de um presidente que comete crimes comuns e de
responsabilidade. Basta um pedido de vista, e o tribunal jogará o tema para um
futuro incerto enquanto a violência aumenta no campo.
A Constituição pede ao STF muitas virtudes institucionais. Duas para começar: primeiro, a coragem de decidir; segundo, a coragem de decidir certo.
Precisa saber que sua demora tem custos
altos. Em torno de 1 milhão de pessoas estão hoje enredadas em conflitos por
terra, invasões de territórios e assassinatos (relatório “Conflitos no Campo
Brasil – 2020”, da Comissão Pastoral da Terra). A incerteza jurídica e um
Congresso que busca legislar a toque de caixa contra direitos indígenas e
socioambientais gera expectativa de leniência à delinquência e incentivos para
desmatamentos e invasões.
Adiar e "deixar para o
Congresso", como se ouviu, trairia a missão de uma corte constitucional,
cuja razão de existir é impedir que o legislador viole a Constituição. Essa
divisão de funções está presente em quase todas as democracias do mundo. Não
significa usurpar, esvaziar ou se sobrepor ao Congresso, apenas lhe fazer
contrapeso e proteger a ordem constitucional.
Em outros tempos, quando não havia
presidente apontando canhão para o tribunal e ameaçando fechá-lo, o STF repetia
essa ideia com muito orgulho e altivez retórica. Tempos sem riscos. A coragem
de um tribunal constitucional se mede em tempos como hoje.
O STF também precisa saber que a decisão
errada, sucumbindo às pressões do agronegócio (que investiu alto na
desinformação e na compra de pareceres jurídicos), perpetuará efeitos
dramáticos, tanto nos outros processos sobre o tema que hoje tramitam na corte,
quanto nos processos administrativos hoje parados no Executivo.
E a generalização da tese do marco temporal
é errada por muitas razões.
Ignora a literalidade do artigo 231 da
Constituição (e o critério de "terras tradicionalmente ocupadas").
Ignora também a própria jurisprudência do STF sobre direitos dos povos
indígenas. Em sucessivos casos, o tribunal estabeleceu que a
"tradicionalidade" está relacionada ao modo de ocupação da terra, não
ao tempo. A data marcada para reconhecimento de terra indígena é exigência
desprovida, ironicamente, de "tradicionalidade jurisprudencial".
Arbitrária, portanto.
Afirmar que a decisão do caso Raposa Serra
do Sol firmou um precedente que deveria ser seguido esconde muita coisa:
primeiro, a jurisprudência anterior; segundo, que esse caso isolado deixava
explícito que sua tese não se aplicava a quaisquer outros; terceiro, que mesmo
precedentes sólidos, mesmo em tradições jurídicas que se apegam a precedentes,
devem ser revogados quando o erro para a situação presente se tornar evidente.
Pedimos ao STF, além de coragem, a dignidade do bom argumento e inteligência jurídica. Que seja um agente do rigor analítico, não da desinformação e do teatro retórico. Que não invoque números ou previsões sem citar fonte respeitável. Que não use analogias baratas ("Copacabana terá que voltar aos índios") ou dados espúrios, porque o assunto é sério demais.
*Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.
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