quinta-feira, 2 de setembro de 2021

Cristiano Romero - Brasil: o país onde até o passado é incerto

Valor Econômico

No Egito, sítios históricos; em Brasília, contas a pagar

No país onde até o passado é incerto, como bem definiu o ex-ministro da Fazenda Pedro Malan, cotidianamente aparecem do nada contas bilionárias para o Tesouro Nacional pagar. Se já não bastasse o fato de as contas do setor público, considerando-se todas as suas esferas (União, Estados e municípios) e poderes (Executivo, Legislativo e Judiciário), serem estruturalmente deficitárias, uma vez que o volume de impostos recolhidos é insuficiente para bancar as despesas, de tempos em tempos o cidadão é surpreendido com a informação de que se descobriu, em algum lugar, um "esqueleto" no armário, uma nova fatura bilionária a ser paga.

No Egito, há mais de um século arqueólogos surpreendem com a descoberta de sítios históricos que ajudam a contar a história da humanidade. Uma missão arqueológica descobriu, em abril deste ano, uma cidade soterrada perto de Luxor, no Sul do Egito. Calcula-se que se trata de um sítio urbano cujo florescimento se deu há três mil anos. A descoberta é considerada uma das mais importantes desde a tumba de Tutancâmon, há quase um século, e está sendo chamada de "a maior cidade antiga do Egito" e, também, de "a cidade dourada perdida". Em comunicado oficial, a equipe de escavação informou que a cidade estava "perdida sob as areias".

Em Brasília, advogados vivem para "descobrir" que, em algum momento, o Estado brasileiro fez algo errado contra grupos específicos da sociedade e, por isso, precisa ressarci-los dos prejuízos sofridos. Os processos correm na Justiça e, de repente, contas de valor indizível são apresentadas aos governantes (leia-se, aos contriibuintes) pelo Poder Judiciário.

Não é preciso ter o dom da sagacidade para presumir que são aquinhoados, nesses processos, os grupos que têm dinheiro para bancar os melhores advogados do país. Ademais, há "esqueletos" de toda natureza sendo "escavados" no Planalto Central, alguns, sequer chegam a ser conhecidos do grande público _ um exemplo: reconhecimento de diferenças salariais e de benefícios a serem pagas a funcionários públicos de forma retroativa e corrigidos pela variação da inflação _ e, outros, são decididos no âmbito administrativo, ou seja, não passam nem pelo crivo da Justiça.

Uma particularidade chama a atenção e exige revisão urgente para aumentar as chances de o erário público não perder de lavada as ações judiciais movidas contra a União: quem julga uma boa parte dos processos é parte interessada em muitas das ações, logo, nem goza da necessária independência para analisar os casos nem do incentivo para diremir as consequências, para a sociedade como um todo, de sentenças bilionárias aprovadas contra o Tesouro Nacional.

Os números oficiais mostram que, de 2018 a 2022, a despesa com sentenças judiciais (precatórios) saltou de R$ 36 bilhões para R$ 89,1 bilhões. Trata-se de um salto de 102% (ver gráfico). Como precatório é uma despesa primária, isto é, obrigatória, deve ser pago porque não recurso possível, uma vez que a decisão é judicial e, portanto, definitiva. Se aplicado o teto constitucional de gastos, instituído na Constituição desde 2017, o gasto possível dessa rubrica estaria limitado a cerca de R$ 40 bilhões.

O governo propôs mudança na Constituição para se ter regra permanente de pagamento dos precatórios. A ideia seria compatibilizar a despesa de precatórios com a principal âncora fiscal do país (o teto de gastos). Na regra atual, parcela de sentença judicial superior a 15% do montante total dos precatório, a União pagaria 15% à vista e o restante, em 5 parcelas. O governo mandou proposta para mudar a Constituição para instituir regra permanente para o pagamento dessas despesas. Será que é o caso de prever regra permanente para algo transitório? Há em Brasília que a recente explosão de sentenças está intimamente ligada ao fato de que, na pandemia, na "solidão" de seus lares, juízes aumentaram a tendência de julgar favoravelmente ações que exigem pagamentos bilionários à União.

 

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