Correio Braziliense
São raros os pensadores cujas obras atravessam
o tempo: Paulo Freire é um desses. Por isso, estamos comemorando seu
centenário. Eles têm em comum o fato de mostrarem o mundo de uma maneira
diferente de como ele aparecia antes. Como Copérnico, que mostrou que a Terra
girava ao redor do Sol, o que parecia impossível à época. Com ineditismo, Paulo
Freire mostrou que a educação não se faz apenas do professor para o aluno, mas
em uma interação entre eles e as coisas que os rodeiam. A partir dessa visão,
revolucionou a maneira de alfabetizar os adultos.
No lugar dos velhos métodos de ensiná-los como se faz com crianças, ele formulou o seu método: substituir o professor que chega com a cartilha pronta, por uma construída depois de pesquisa, identificando palavras que o aluno usa no seu dia a dia. No lugar de u-v-a igual a uva, m-a-n-g-a igual a manga, no lugar de n-e-v-e igual a neve, usar f-o-m-e como fome. Essa mudança simples, que hoje parece óbvia, representou uma mutação epistemológica, característica de um gênio. Paulo Freire deu o toque de mudança para explicar o mundo e dizer como transformá-lo.
Não ficou apenas nisso. Paulo Freire promoveu
outro ponto de mudança ao sugerir que educar é mais do que instruir, é também
dar passos para a liberdade das pessoas que se educam. Antes de Paulo Freire, a
educação era um instrumento para ensinar crianças a sobreviverem e contribuírem
na construção de um mundo melhor, mais rico e mais belo. Mas ele ensinou que
educação é o vetor da libertação de cada pessoa ao conhecer, deslumbrar-se e
agir. A partir de Freire, educar passou a ser o mesmo que caminhar para a liberdade:
dos que se educam e do mundo que eles construíram.
Paulo Freire juntou filosofia libertária com o
método de alfabetizar, na realização desse processo libertário. Com o u-v-a
igual à uva, o aluno tem mais dificuldade, mas pode mesmo assim se alfabetizar,
mas ao descobrir que f-o-m-e é igual à fome ele aprende mais facilmente e
adquire consciência de sua situação no mundo, das injustiças que sofre e da
necessidade de lutar para ir em direção à liberdade, inclusive das
necessidades essenciais à vida.
Com Freire, o papel da educação passou a ser o
de ampliar o horizonte da liberdade da pessoa, de seu povo e da humanidade
inteira. Ele mostrou também que o aprendizado é resultado da convivência entre
o aluno e o professor, sem submissão de um ao outro, com o mundo onde eles
vivem. Com essas duas formulações - educação que liberta e que é feita pelo
professor junto com o aluno, em sintonia com o que há ao seu redor - Paulo
Freire é o Copérnico da educação.
Depois de Paulo Freire, a alfabetização passou
a ser o passo inicial da libertação. Ter visto o que não era visto antes, faz
dele um gênio. A partir dele, cabe a nós avançarmos na definição do conceito de
analfabetismo, e ampliarmos o uso das novas ferramentas para promover a
“alfabetização contemporânea”. Nos tempos dele, analfabeto era quem não sabia
decifrar as letras, no mundo global e tecnificado que surgiu deste então, o
“alfabetizado contemporâneo” precisa ler, falar, entender, escrever bem seu
idioma, falar pelo menos um idioma estrangeiro, conhecer as bases da
matemática, das ciências, das artes, das ideias do mundo; ser capaz de entender
os problemas, os desafios e os rumos da civilização em sua globalidade e sua
interação com a natureza; dispor das habilidades necessárias para exercer pelo menos
um ofício e ser capaz de continuar aprendendo até o final de sua vida.
Esta “alfabetização contemporânea” exige uma
educação com a máxima qualidade para todos: quebrar a injustiça com pessoas, ao
negar educação a uma parte da população, e parar a estupidez social de
desperdiçar o potencial de conhecimento dos que são deixados para trás. Além de
aproveitar as modernas tecnologias da teleinformática, a “alfabetização
contemporânea” exige assegurar a chance de escola com a máxima qualidade e
qualidade igual para toda criança, do dia em que nasce até o final do ensino
médio, independentemente da renda, do endereço, da raça e do gênero. Para
tanto, será necessário que o Brasil disponha de um Sistema Público Nacional
Único de Educação, sem o qual não será possível a máxima qualidade, ainda
assegurar equidade plena.
Paulo Freire foi o gênio educador, sua obra e
o mundo precisam agora de educacionistas ativos para abrir os caminhos da
liberdade para todos.
*Professor Emérito da UnB e membro da Comissão
Internacional da Unesco para o futuro da educação.
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