Correio Braziliense
Há um rosário de decisões de Guedes que o
beneficiaram financeiramente, sem que tivesse que fazer uma nova aplicação em
sua conta no exterior
Tem coisas no Brasil difíceis de entender.
Por exemplo: Dom Pedro I, que proclamou a Independência, é homenageado com uma
das menores ruas do Centro Histórico do Rio de Janeiro, nossa capital de 1763
até 1960, quando a sede do governo foi transferida para Brasília. Começa na
Praça Tiradentes, ao lado do Teatro Carlos Gomes, e termina na Rua do Senado,
com 141 endereços, 112 residências, 24 estabelecimentos comerciais, três
prédios inacabados e 227 moradores, com uma renda média de R$ 1,143. Dependendo
do prédio, o preço de um apartamento varia de R$ 3 mil a R$ 8 mil o metro
quadrado.
Como já começamos a contagem regressiva para o Bicentenário da Independência, vale o desagravo. Essa lembrança veio em razão do trocadilho do título da coluna com a decisão de Pedro I de não regressar a Lisboa, contrariando as ordens das Cortes Portuguesas, em 9 de janeiro de 1822: “Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto. Digam ao povo que fico”. O Dia do Fico, referência à frase célebre, foi uma preparação para a proclamação da Independência, em 7 de setembro de 1822.
Havia muita ambição e esperteza embarcadas
naquela rebeldia. Liderar a Independência era a única maneira de manter o
Brasil sob controle da Casa de Bragança — com ela, a monarquia, o regime
escravocrata, o tráfico de negros escravizados e o projeto de reunificação da
Coroa, que levaria Dom Pedro I a abdicar do trono em 7 de abril de 1871 e
voltar para Portugal para lutar pelo trono para a filha primogênita Maria da
Glória. Em contrapartida, herdamos a integridade territorial e o Estado
brasileiro, com suas principais instituições. Não foi pouca coisa.
Ambição e esperteza é o que não faltam nas
altas esferas do poder. Por exemplo, não conseguia entender a longa permanência
do ministro da Economia, Paulo Guedes, no comando da pasta. A vida toda foi um
economista ultraliberal. Na campanha eleitoral, fez a cabeça do presidente Jair
Bolsonaro e virou o Posto Ipiranga da economia, com apoio do
mercado financeiro, para fazer as reformas liberais, entre elas
a tributária e a administrativa. Com o passar do tempo, não fez as
reformas e fracassou. Nossa economia registra uma brutal desvalorização do
real, inflação alta, desemprego em massa e estagnação
econômica. Outros liberais, diante da guinada populista iminente do governo
Bolsonaro, já teriam entregado o cargo, como alguns fizeram em sua equipe.
Agora já sabemos a explicação para o “Fico”
do ministro da Economia: enquanto o povo come osso, Guedes ganha muito dinheiro
com a crise, porque a desvalorização do real engorda suas economias em dólar,
que ontem fechou a R$ 5,48. A conta de Guedes num paraíso fiscal no exterior
foi revelada, no último fim de semana, pelo Consórcio Internacional de
Jornalistas Investigativos (ICIJ). O Ministério da Economia informou que toda a
atuação privada de Paulo Guedes foi “devidamente declarada à Receita Federal,
Comissão de Ética Pública e aos demais órgãos competentes”, mas há controvérsias.
Eticamente, ganhar dinheiro com a desvalorização do real é incompatível com o
cargo de ministro da Economia. No popular, é muita cara de pau.
Imposto de Renda
Por essa razão, Guedes foi convocado a dar esclarecimentos à Comissão de
Trabalho, Administração e Serviço Público da Câmara, e convidado também pela
Comissão de Assuntos Econômicos (CAE) do Senado a explicar a existência de sua
empresa offshore, que não paga imposto no Brasil. Guedes abriu a empresa em
2014, ou seja, no ano da reeleição da ex-presidente Dilma Rousseff. O horizonte
econômico era de recessão e aumento da inflação. Até aí, tudo bem — toda vida
ganhou dinheiro no mercado financeiro. Em 2016, porém, o governo criou
facilidades para que todos repatriassem os recursos enviados para o exterior,
mas Guedes não encerrou suas operações com a offshore. Deixou o dinheiro lá
fora, no paraíso fiscal, mesmo depois de virar ministro da Economia.
Há um rosário de decisões de Guedes que o
beneficiaram financeiramente, sem que tivesse que fazer uma nova aplicação em
sua conta no exterior. O artigo 5o do Código de Conduta do setor público veda
“investimento em bens cujo valor e cotação pode ser afetado por sua decisão”.
Quando nada, o câmbio sempre será atingido por declarações ou atos do ministro
da Economia, bem como do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, que
também tem conta numa offshore no exterior. É uma “não conformidade”.
Tudo isso acontece num momento crucial para o governo, que está em dificuldades para financiar o chamado Auxílio Brasil, programa de transferência de renda que Bolsonaro quer aprovar, para substituir o Bolsa Família. O problema é que o governo não tem dinheiro, tenta viabilizar o projeto com recursos do Imposto de Renda, que pretende modificar com esse objetivo, deixando de fora as contas offshore, é claro. O jabuti no IR, porém, subiu no telhado. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), já mandou recado de que não vai misturar alhos com bugalhos.
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